Desigualdade Social

Moinho de gastar gente e a acumulação primitiva no Brasil

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O processo de moenda é, portanto, a construção do próprio sistema capitalista, modelo social que hierarquiza as classes e as etnias a elas associadas e relega ao arcaico as populações pobres, pretas e indígenas, enquanto a classe alta descendente europeia desfruta da modernidade

Imagem: reprodução

Renan Somogyi Rodrigues da Silva*, Brasil Debate

Darcy Ribeiro, um dos primeiros etnólogos de profissão – ainda que não de formação – no Brasil, realizou várias empreitadas nos mais diversos campos sociais: educação, antropologia, sociologia, política. Dentre esse oceano de possibilidades investigativas, o presente texto pretende apenas fornecer uma breve análise de uma das conjecturas mais frutíferas de Darcy Ribeiro: o moinho de gastar gente brasileiro.

Os indígenas foram desgastados durante a caça predatória das etnias ameríndias e sua consequente escravização pelos europeus; os africanos passaram por processo semelhante, sendo trazidos de seu continente para aqui serem desgastados “para produzir o que não consumiam”.

Ao realizar tais constatações, ficam dois questionamentos: do que é feito o moinho de gastar gente e qual é o resultado da moenda? O autor responde a ambas as perguntas, ainda que de forma indireta. O moinho é a própria técnica europeia, importada para o continente americano e que aos poucos foi subsumindo as técnicas dos povos originários, ainda que delas se apropriassem quando necessário. Esse avanço – reconhecido pelo nosso autor como tal – proporcionou um aprimoramento nas técnicas, possibilitando o crescimento e a diferenciação entre dois núcleos: o rural e o urbano, ambos funcionando mutuamente para fazer funcionar a empresa colonial e, assim, “plasmá-lo dentro dos cânones da cultura lusitana e totalmente fiel à Igreja católica apostólica romana”.

Não obstante essa moenda gastar as gentes da terra por meio da técnica europeia, o produto final é imbuído das práticas indígenas e africanas. Conferindo maior agência cultural àquela do que a esta, Ribeiro afirma que ambas foram assimiladas e amalgamadas na formação do que veio a ser o brasileiro. Em outras palavras, é a partir da gastança de gente – os africanos, indígenas e colonos pobres –, gestada sob a técnica europeia e suas formas sociais correspondentes, que se formou o brasileiro, com traços culturais e étnicos provenientes das três matrizes fenotípicas que compuseram o Brasil, cujo efeito é a ninguendade.

Essa é a sociedade brasileira fruto da moenda: uma sociedade estratificada, cuja modernização foi conservadora e produziu uma dicotomia entre o arcaico e pobre e o moderno e rico, em que a gastança de gente não cessa. Por outro lado, demonstrando uma enorme fortuna cultural como fruto da transfiguração étnica a que foi submetida, a população brasileira já possui o “germe” que pode transmutá-la na sociedade utópica que Darcy tanto ansiava: sua própria fortuna cultural. Isto é, a estratificação social fruto da moenda e da gastança de gente é o negativo da sociedade, enquanto o amálgama cultural fruto do mesmo processo gera muito mais bônus do que ônus.

O processo de moenda é, portanto, em minha interpretação, a construção do próprio sistema capitalista no país, modelo social que hierarquiza as classes e as etnias a elas associadas e relega ao arcaico as populações pobres, pretas e indígenas, enquanto a classe alta descendente europeia desfruta da modernidade. Em outras palavras – e conferindo um sentido marxista à presente análise –, o moinho de gastar gente é a acumulação primitiva de capital dentro do território brasileiro. Foi durante esse processo – que se perpetua, com mudanças, até os dias atuais – que as populações submetidas ao trabalho forçado construíram a sociedade nacional, sendo esmagadas para “adoçar a boca do europeu com açúcar; para enriquecer com o ouro de Minas Gerais. Então a classe dominante [brasileira]sempre se deu bem e continua se dando bem”.

Segundo Marx, a acumulação primitiva de capital seria, resumidamente, não “resultado do modo de produção capitalista, mas seu ponto de partida”. Em outras palavras, as condições necessárias para que seja possível reproduzir o capitalismo em cada sociedade devem ser garantidas por essa acumulação, que assenta bases econômicas, culturais e jurídicas para garantir a viabilidade desse sistema. No caso da Inglaterra, caso analisado por Marx, a acumulação primitiva ocorreu por meio do despojamento dos camponeses de seus meios de produção, fato que os impeliram ao trabalho remunerado fabril.

No Brasil, defendo que houve um processo de acumulação semelhante, mas suas bases foram estruturadas a partir da exploração do trabalho escravo indígena e africano – desde sempre despojados de qualquer meio de produção no sistema escravista –, cujo resultado foi a formação da Empresa Brasil, “empreendimento econômico secular, o mais próspero de seu tempo, em que o objetivo jamais foi criar um povo autônomo…” , mas sim gestar o sistema econômico excludente no qual os brasileiros vivem: o capitalismo periférico e submisso ao centro.

A herança crítica do autor de O Povo Brasileiro, portanto, transcende em muito o âmbito acadêmico apenas, provando ser mesmo um modelo de sociedade pela qual lutar, cujas diferenças culturais e étnicas sejam respeitadas e celebradas não como o que é estranho e externo à sociedade, mas intrínseco e constitutivo, e onde o modelo de classe estratificado capitalista não impere e, portanto, não haja mais gastança de gente e nem a exclusão de parte delas do acesso ao fruto de seu trabalho.

*Renan Somogyi Rodrigues da Silva é mestrando em História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH-USP).

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