Mourão ironiza “retiro espiritual” de Bolsonaro e afirma que ele deveria passar faixa a Lula
Mourão também falou sobre os motivos que levaram à derrota de Bolsonaro nas urnas: “O cara comprava vacina e falava mal de vacina, pô. Esse discurso aí não foi bom. Isso prejudicou o presidente. Ele tinha todas as condições de ganhar”
Fabio Murakawa, Vandson Lima e Fernando Exma, Valor
“Se acabou.” É com esse trecho viral em vídeos do TikTok e do Instagram – retirado do rap “Se Acabo”, do grupo The Beanuts – que o vice-presidente Hamilton Mourão define o clima no Planalto após a derrota de Jair Bolsonaro (PL) para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na eleição presidencial de 30 de outubro.
Eleito senador pelo Republicanos do Rio Grande do Sul, o general da reserva não vê sentido no movimento de bolsonaristas radicais em frente a quartéis para pedir uma “intervenção federal”.
Mourão prefere olhar para a frente e afirma que o capital de 58 milhões de votos deixa Bolsonaro apto a liderar a direita e, se quiser, construir seu retorno ao Poder pelas urnas em 2026.
Para isso, no entanto, o presidente terá que sair da reclusão autoimposta no Alvorada – que Mourão classifica ironicamente como “retiro espiritual” – e “trabalhar politicamente”.
Ele diz ainda ser favorável a mudanças no chamado “Orçamento secreto”, para que o Executivo recupere a capacidade de manejar os recursos públicos. Criado em 2019, este mecanismo permite aos congressistas apresentar emendas ao Orçamento sem revelar sua identidade. Elas oficialmente são “emendas de relator”. A manobra teve o aval de Bolsonaro para a consolidação de sua base no Congresso. Ele atribui o fenômeno ao enfraquecimento dos últimos presidentes, Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e o próprio Bolsonaro, que, ameaçados de impeachment, foram obrigados a ceder mais poder ao Legislativo.
Mourão afirma que não entregará a faixa presidencial a Lula, caso Bolsonaro se recuse a fazê-lo. Citando Winston Churchill, ele defende que o atual presidente deveria encarar o sucessor na rampa do Planalto, com “um gesto de altivez e desafio”: “Toma aí, te vira agora, meu irmão. Te vejo em 2026”.
Questionado como fica a imagem das Forças Armadas depois dos quatro anos de governo Bolsonaro, Mourão respondeu que elas se baseiam na hierarquia e na disciplina. “Se elas fogem disso, viram um bando armado, que é o troço mais perigoso que tem. A política não pode estar dentro do quartel pois fere de morte a hierarquia e a disciplina. As Forças Armadas se mantiveram fora do governo, 95% dos militares que estavam dentro do governo eram da reserva. Você não viu um único general da ativa fazer algum pronunciamento”, acrescentou.
Em maio de 2021, contudo, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, que à época era general da ativa, participou de um ato político promovido pelo presidente Jair Bolsonaro. Sua presença no ato ocorreu dias depois de ele prestar depoimento à CPI da Covid instalada pelo Senado. Posteriormente, o Exército decidiu não punir o militar.
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A seguir os principais pontos da entrevista ao Valor:
Como estão esses últimos dias de governo?
Estamos no ritmo daquela musiquinha: “Se Acabou”. Estamos no ritmo de limpar mesinhas, preparar as coisas. O tempo está comendo aí, pô. Um novo inquilino [Geraldo Alckmin] está chegando.
Como o senhor acha que será a atuação do novo Congresso?
Pelo novo Congresso eleito, o governo terá que negociar bastante. Mas a gente sabe que as cabeças pensam diferente. Muita gente que poderia fazer oposição ao governo eleito, na hora termina flexibilizando e se juntando aos apoiadores do novo governo.
Esse novo Congresso está forçando o governo eleito a acelerar a PEC da Transição?
Essa PEC da Transição para mim é um estupro no equilíbrio fiscal do país, da forma como está sendo colocada. Dar um cheque em branco para um governo que não foi eleito com um cheque em branco da população, acho complicado. É óbvio que a regra do teto de gastos nasceu errada e está chegando no limite. Nós temos que chegar a uma outra regra que permita previsibilidade fiscal. Caso contrário, a gente já sabe onde termina isso aí.
Por que o senhor acha que a regra do teto nasceu errada?
Eu era secretário de Economia e Finanças do Exército quando ela foi lançada, em 2016. Eu reuni o Alto Comando do Exército e mostrei: “Aqui, o Orçamento é uma pizza; a pizza só pode aumentar de acordo com a inflação; mas tem fatia que aumenta mais; consequentemente, as outras fatias serão comprimidas, principalmente as despesas discricionárias”. E foi aonde a gente chegou.
Que rumo dar ao país com um Congresso de direita e um presidente de esquerda?
Os dois terão que se aproximar para o centro. A direita não é um agrupamento de cães raivosos. A verdadeira direita é aquele segmento conservador, que crê em Deus. Que entende que os direitos fundamentais, o direito à liberdade, o direito à vida, o direito à propriedade, o direito à busca pela felicidade não são dados por governo nenhum. Esse pensamento de direita, unido ao pensamento liberal clássico na economia, é por onde a gente se baseia. Então, vamos ter que nos acertar para que eles consigam fazer parte do que são as pautas deles. Os dois lados terão que se buscar sempre olhando para o Brasil.
Como ficou a imagem das Forças Armadas depois desse período de quatro anos?
As Forças Armadas se baseiam na hierarquia e na disciplina. Se elas fogem disso, viram um bando armado, que é o troço mais perigoso que tem. A política não pode estar dentro do quartel pois fere de morte a hierarquia e a disciplina. As Forças Armadas se mantiveram fora do governo, 95% dos militares que estavam dentro do governo eram da reserva. Você não viu um único general da ativa fazer algum pronunciamento.
E como deve ser a relação dos militares com o novo governo?
Vai continuar tudo como dantes no quartel de Abrantes. Eu gosto muito de uma frase do Delfim Netto: “no dia 1º de janeiro, a quitanda vai abrir com berinjela pra vender e troco para o freguês”. É isso que vai acontecer. O relacionamento dos governos do PT com as Forças Armadas foi mais ou menos tranquilo. A única questão foi aquela coisa da Comissão da Verdade. E aí foi a Dilma que meteu os pés pelas mãos. O Lula nunca meteu os pés pelas mãos junto às Forças. Vai escolher um ministro da Defesa, um civil qualquer desses aí, tem várias especulações.
Como o senhor vê esse movimento pedindo “intervenção federal” na frente dos quartéis?
Mourão: Desde 2015 tem um grupo na sociedade brasileira inconformado com a corrupção e com a falta de resposta mais rápida do nosso sistema judicial. E esse pessoal acha que a solução é ter um golpe militar aqui. Aí, fazem uma interpretação enviesada do artigo 142 da Constituição. A nossa visão do artigo 142 coloca três missões para as Forças Armadas: defesa da pátria; garantia dos Poderes Constitucionais; e, por iniciativa de qualquer um deles, Garantia da Lei e da Ordem. Tem gente que interpreta que a garantia dos poderes constitucionais seria um poder moderador concedido às Forças Armadas. Aí, até a interpretação disso é complicada.
Que mensagem o senhor enviaria para essas pessoas?
A minha mensagem é muito clara: nós temos que viver para lutar no outro dia. Não adianta querer morrer hoje, senão não vamos viver para lutar amanhã. Viver para constituirmos uma força tremenda. Temos um capital político de 58 milhões de pessoas. Podemos em 2024, bem planejados, abraçar um bom número de prefeituras, base do sistema político, e ganhar a eleição em 2026.
Ganhar com o Bolsonaro?
Com o Bolsonaro ou outro nome. Temos o Tarcísio [de Freitas], que ganhou uma eleição em São Paulo que ninguém esperava que ele ganhasse.
Quem vai capitanear essa luta da direita?
O presidente Bolsonaro, quando emergir do retiro espiritual dele, vai compreender que ganhou esse capital. Acho que ele tem que se posicionar no espectro político, trabalhar politicamente. Vai ser a primeira vez desde 1989 que ele não tem mandato. São 33 anos, é uma vida. É ele entender que agora ele terá uma posição dentro do PL, de presidente de honra. Ou seja, aqui em Brasília, articulando, tem todo o capital para voltar muito bem em 2026. Desde que ele saiba explorar bem isso aí.
Fala-se na hipótese de Bolsonaro não entregar a faixa. O senhor ficaria com essa atribuição?
Acho que está havendo uma distorção. Porque passagem de faixa é do presidente que sai para o presidente que entra. Se o presidente, vamos dizer assim, ele não vai querer passar a faixa, não adianta dizer que eu vou passar. Eu não sou o presidente. Eu não posso botar aquela faixa, tirar e entregar. Então, se é para dobrar, bonitinho, e entregar para o Lula, pô, qualquer um pode ir ali e entregar.
O senhor não vai assumir essa missão?
Não é o caso.
E acha que Bolsonaro deveria entregar a faixa?
Acho que seria um grande gesto. Sou um grande fã do Winston Churchill. Tem um aforismo dele que diz que, na guerra, você tem de ter determinação, na vitória tem que ser magnânimo e na derrota, tem que ser altivo e desafiador. Acho que seria um gesto de altivez e de desafio: “Toma aí, te vira agora aí, meu irmão. Te vejo em 2026”.
O senhor diz que há um problema no nosso sistema de freios e contrapesos. A que se refere?
Vejo que a nossa Suprema Corte avançou além dos limites da cadeira dela, com decisões que não estão de acordo com o devido processo legal. Tem que haver um momento em que nossos ministros entendam que estão ultrapassando. Esse inquérito das Fake News vem desde 2020, não tem prazo, não tem objeto, o Alexandre de Moraes é investigador, denunciador, juiz, é o ofendido. Isso não está correto. É hora de haver uma conversa, e o Senado, que é a Casa que tem a responsabilidade, colocar um freio nisso aí.
Como? Impeachment?
Impeachment é a solução mais drástica. Acho que a gente pode começar com uma pressão, de mudança. Por exemplo, colocar mandato. É importante que tenham mandato, afinal eles não foram eleitos para nada e estão tomando decisões como se tivessem sido eleitos. Vejo a questão das decisões monocráticas [como problema] e também o processo de seleção do ministro. Deveria haver um processo de seleção, fica muito no livre-arbítrio do presidente. Hoje, dos 11, só um é magistrado, o [Luiz] Fux, e a Rosa Weber foi juíza do trabalho. O resto, alguns foram desembargadores pelo quinto constitucional e os outros nunca foram magistrados.
Vai haver um distensionamento na relação dos Poderes?
Acho que sim. Mas, enquanto continuarem essas decisões, principalmente do Alexandre, fica uma situação ruim. O devido processo não está ocorrendo. A discussão tem que ocorrer. Todo mundo quer o impeachment, sou cobrado diariamente, “vai fazer o impeachment do Alexandre de Moraes”. Sempre contra ele.
Vai apoiar a reeleição de Rodrigo Pacheco no Senado?
O atual presidente é prudente. É o que posso falar, até porque o voto é secreto. Ele está lutando para ser reeleito, não esconde isso de ninguém. Mas o grupo do PL também quer apresentar um nome. Aí a gente vai avaliar.
O governo Bolsonaro teve duas fases muito distintas: antes e depois da entrada da turma mais política, de integrantes do Centrão. Como viu a mudança?
Primeiro, o governo veio com uma visão idílica, de que poderia governar com as bancadas temáticas. Botou a Tereza Cristina na Agricultura, aí tem o cara da bala, o cara da Bíblia. Isso não controla ninguém. Se partido não consegue controlar, imagina bancada. Aí veio a pandemia, um balde de água fria: a gente tinha aprovado a reforma da Previdência, entregado uma reforma administrativa e parte da reforma tributária. Parou tudo. Entrou o pavor. “O que vai acontecer? Vai cair a economia e não vou conseguir ser reeleito” – digo pensando como se fosse o presidente. Aí ele [Bolsonaro] entrou de cabeça na pandemia. Acho que poderia ter refluído de algumas declarações que ele deu, que no final acabaram por prejudicar o processo de reeleição. Começaram a aparecer os pedidos de impeachment e ele teve que mudar o relacionamento dele, chamar realmente os profissionais. Aquela história, estávamos jogando meio amadoristicamente, agora vamos botar os profissionais em campo.
O que aconteceu, então?
Aí, se acalmou o relacionamento, mas perdemos o controle do Orçamento em troca. O tal Orçamento secreto, que não é secreto, foi um processo: no governo da Dilma, foram as emendas individuais que se tornaram obrigatórias porque ela estava mal. No Temer, foi emenda de bancada. Com a gente mal, foi a emenda de relator. Aí perdeu-se o controle do Orçamento pelo Executivo, o que eu acho um absurdo.
É a favor de o Executivo voltar a comandar o Orçamento?
Lógico. Como tem que funcionar: o Executivo prepara a peça orçamentária, entrega para o Congresso, vai se estabelecer as prioridades e o governo executa.
Onde o presidente Bolsonaro perdeu a eleição?
Acho que Bolsonaro poderia ter ganhado essa eleição tranquilamente. Mas a discussão da covid-19 foi muito negativa em cima da gente. Apesar de o governo ter feito tudo certo. Ele contratou gente, comprou os insumos, habilitou leito de UTI, colocou dinheiro na mão dos Estados e municípios, abriu linha de crédito, pagou salário e, no social, pagou o auxílio emergencial.
➙ Relatório da CPI é a biografia oficial do governo Bolsonaro
E onde foi o erro?
O erro foi no discurso. O cara comprava vacina e falava mal de vacina, pô. Esse discurso aí não foi bom. Isso que prejudicou o presidente. Ele tinha todas as condições de ganhar. Nosso governo fez muita coisa. Somos o primeiro governo que está terminando com o gasto público em relação ao PIB menor, a dívida não estourou, tudo foi controlado. O mundo inteiro está com problema de inflação. O governo tinha tudo para ser reeleito e seguir nesse caminho.
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