O bolsonarismo adotou a camisa da seleção e os símbolos nacionais como suas marcas. Isso nada tem de patriótico. Pelo contrário, é covardia, prevalecimento. Ao desfardar os militares, lhes fez exporem suas fraquezas e vulnerabilidades. O que, diga-se, existe em todas as instituições. Mas ao invés de proteger as necessárias Forças Armadas, as jogou à desconfiança social
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Há uma máxima, não sei se proposta por algum psicólogo, psicanalista, filósofo ou algo do tipo que diz que projetamos no outro os nossos erros. Não sei até que ponto a teoria se sustenta. Mas, no bolsonarismo, isso é clarividente.
Muitos líderes mundiais pareciam aliviados ao enviarem mensagens públicas de parabenizações ao vitorioso das eleições de domingo último. Claro que eles mandariam congratulações independente do resultado. Reconhecer o vitorioso é democrático. Mas muitas falas davam pistas de para quem eles estavam torcendo.
Espera-se que, agora, o Brasil melhore essa má fama junto à comunidade internacional (com alguns, parceiros comerciais, inclusive).
Contudo, temos muito o que consertar internamente. O bolsonarismo, com seus paradoxos e contradições, destruiu conceitos, ideias, sentimentos, instituições…
Ao longo dos últimos quatro anos, Jair Bolsonaro (PL) pareceu não governar, só propagar o ódio e o racha na população. Aliás, aqui vai a primeira contradição: ele alegava que as políticas afirmativas, por exemplo, criavam estratos na sociedade. Mas era ele que separava a população entre o “nós e o eles”. Ora, sempre haverá as pessoas que simpatizam e as que antipatizam com o governo. Qualquer que seja o governo. Mas cabe justamente ao governante evitar confrontos, pacificar e governar pra todos (e deixar isso explícito).
O bolsonarismo adotou a camisa da seleção e os símbolos nacionais como suas marcas. Isso nada tem de patriótico. Pelo contrário, é covardia, prevalecimento. Covarde, pois não assume uma bandeira e um símbolo próprio; prevalecimento, pois passa a considerar que quem não usa as suas cores estão “contra a pátria”, como se o pressuposto da política não fosse querer o bem do país. Sequestrar os símbolos nacionais é realmente simbólico: ilustra o quão patriótico eles não são.
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Mesmo as instituições de segurança, tema tão caro à corrente, sofreram revezes. A reputação das Forças Armadas junto à população caiu muito. Seja pelo presidente nomear grande número de militares a cargos políticos aos quais eles não estavam preparados para exercê-los; seja por, direta ou indiretamente, insinuar que poderia usá-las para um golpe de estado. Ao desfardar os militares, lhes fez exporem suas fraquezas e vulnerabilidades. O que, diga-se, existe em todas as instituições. Mas, ao invés de proteger as necessárias Forças Armadas, as jogou à desconfiança social.
Ainda com relação às forças de segurança, por último, o presidente constrangeu a Polícia Rodoviária Federal (PRF) em pelo menos duas ocasiões. A primeira foi justamente no dia das eleições de segundo turno, em que não se sabe a partir da ideia de quem, ela fez uma operação padrão para fiscalizar pneus carecas e faróis de ônibus que transportavam eleitores principalmente no nordeste. Especula-se que quem vai de ônibus votar são os potenciais eleitores de Lula, pois mais pobres. Clara tentativa de intervenção nas urnas.
Além disso, acusa-se a PRF de não agir com a necessária rigidez para dispersar as manifestações pró-ditadura que fechavam estradas pelo país desde o resultado das eleições.
O Bolsonaro, que tanto criticou o que chama de política do “fica em casa”, quando chegou a vacina, que podia justamente fazer com que saíssemos do isolamento, fez pouco caso dela.
O bolsonarismo, de certa forma, deslegitimou a própria direita legítima e democrática. Assim como se apropriou da camisa da seleção, o movimento diz estar falando pela direita. Não está. O discurso bolsonarista é de extrema-direita. Não há crime nisso, embora não vejo como salutar nenhum extremismo, seja o de direita, o de esquerda e, já que estamos falando em paradoxos, até mesmo o extremismo de centro. Mas, dizia, o problema não é ser extremista. A questão é posicionar-se claramente contra a democracia, com métodos que muitas vezes se assemelham aos empregados pelo fascismo. E aqui uma nota também talvez paradoxal: não me sinto à vontade intelectualmente para acusar o bolsonarismo de fascista. Mas que há empregos de métodos semelhantes, isso é inegável.
Ao indiretamente defender somente as religiões cristãs, sobretudo as neopentecostais, foi o bolsonarismo que fez aquilo que tanto prega que Lula fará: a intolerância religiosa. São eles quem empregam discursos anticristãos para defender um cristianismo às avessas. São eles que fomentam o preconceito conta as religiões de matrizes afros, por exemplo.
Ao advogar que a verdadeira família é marido, esposa, filhos e o cachorro, exclui grande número de famílias composta por dois “maridos” ou duas “esposas”; por uma mãe abandonada e seus filhos; pela mãe, pelo pai e pelos filhos, só que divorciados; pelo casal e pelos enteados; pelo casal sem filhos por opção ou por impossibilidade genética; e até só pelo homem solteiro convicto e seu cachorro.
O bolsonarismo acabou até mesmo com aquele nosso tio bêbado do churrasco de domingo. Ele era legal. Gostávamos dele. Na segunda ou terceira cerveja, contava piada sem graça, fazia perguntas indiscretas aos primos e organizava o torneio de arroto. Agora, ele nem precisa beber muito pra defender ideias preconceituosas e homofóbicas, quando não racistas. Parece esquecer das suas histórias e peripécias impublicáveis contadas antes de 2018, pois virou um moralista incoerente. O primo que passou no vestibular da Federal, antes era motivo de orgulho. “Esse é meu sobrinho”, ele dizia com a voz embargada de emoção de bêbado. Agora, o tiozão enaltece a ignorância e menospreza o conhecimento, a ciência, as universidades. Maldiz o filho da sua irmã, que está se bacharelando.
O pensamento bolsonarista acabou com a dignidade daquela senhora de meia-idade que, ao ficar sabendo, na manifestação golpista, que o estado de sítio fora decretado e o Alexandre de Moraes estava preso, se ajoelhou agradecendo a Deus.
O bolsonarismo acabou com confiança nas notícias, pois fabricava mais fake news do que se era capaz de desmenti-las.
O bolsonarismo acabou com a esperança nas eleições. Agora, elas viraram verdadeiras guerras civis.
O bolsonarismo defende a democracia, mas só se eles ganharem.
A partir de janeiro, há muito o que (re)construir no Brasil.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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