Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Sou o espectador da política. Assisto da parte alta do muro ao espetáculo teatral da democracia.
A viuvez e a orfandade são lugares sociais distintos. Enquanto as viúvas se encarregam das vitórias e honrarias dos seus mortos, os órfãos carregam a injúria e a infâmia.
As viúvas são moralmente superiores porque seus mortos também estão isentos do julgamento de suas culpas. As viúvas herdam o melhor dos maridos, os órfãos, o pior dos pais. Maridos mortos se transformam no melhor dos homens. E serão pranteados por alguém que faz brilhar a insígnia.
Com o tempo as viúvas se tornam orgulhosas de sua história com o morto. Gostam de lembrar dos velhos e bons tempos, quando eram papagaios de pirata. Enquanto os órfãos negarão os pais, envergonhados e rancorosos.
A elevação moral das viúvas precisa ser melhor explicada, pois representam um lugar em que cada uma delas se mira para exaltar seus predicados.
A humanidade, a justiça, o respeito, a consideração, a generosidade, a bondade, o altruísmo, a defesa dos fracos e dos oprimidos, a prática do bem, a assistência aos necessitados, cada um desses atributos veio do falecido e nelas aderiu como uma marca de superioridade. As viúvas são pessoas naturalmente boas enquanto os órfãos são merda.
Cada vez que uma viúva ofende um órfão, maior ela fica e menor fica ele. Então a ofensa e o destrato são práticas normais para as viúvas.
As viúvas creem na virtude de sua causa e no mal que marca os órfãos.
Os órfãos são racistas, homofóbicos, machistas e defendem todo o mal no mundo. Sua causa é a da morte e da indignidade. Devem ser extintos e erradicados da face da terra. Trazem a marca de Caim na testa. Os órfãos são seres sem causa.
O maniqueísmo que alimenta a eterna luta entre viúvas honestas e gentis e órfãos malcriados e agressivos define o coração delas que ocupam o lugar mais elevado da moralidade. A moralidade que define o que é bom e o que é mau está sempre nas mãos das viúvas, senhoras que podem legislar acerca de quem presta e de quem não vale a pena salvar.
A herança direta das viúvas como júri, juízas e executoras torna sua condenação inapelável e irreversível.
O maniqueísmo é uma forma de ler a realidade absolutamente dicotômica fundamentada em percepções de certo e de errado. Geralmente, situações sociais polarizadas exigem de seus usuários posicionamentos mais radicais e irrefletidos, assumindo um lado por motivações emocionais e não racionais.
E essa mesma situação exige que o julgamento do lado oposto seja sumário e generalizado. De fato, não está direcionado a pessoas específicas, mas apenas para exaltar a elevação moral dos julgadores que ao condenar os opositores se veem como dignos representantes da moral.
Os valores envolvidos em operações mentais como essas serão sempre maniqueístas e rápidos, da mesma forma que a condenação do outro será sumária, independente da proximidade e dos afetos que marcam seus opositores.
Passa a existir uma reserva de dignidade cujo acesso é vedado ao outro pois sua condenação de ignorante é completa por admirar seu político de estimação grosseiro. Em oposição a essa grosseria, o político de estimação das viúvas é gentil e generoso e sua educação o coloca sempre no lugar mais elevado dos valores humanos.
A linguagem usada para desqualificar os órfãos será degradada e indigna. Uma nomenclatura que ironiza sua indignidade e ridiculariza sua humanidade. Ele será sempre comparado a uma barata.
Em seu estado maniqueísta, o portador da verdade e da moral fica cego para manter seu ego num patamar superior. Está sempre pronto a condenar o outro, a julgar seu comportamento inadequado, como se o estado natural de sua personalidade fosse superior por merecimento.
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Negação da realidade, contra as vacinas, terraplanista, existem muitas razões para desprezar os órfãos e a sua cegueira é a maior prova de sua imbecilidade. Uma vez reconhecida sua inferioridade intelectual e moral, basta condenar. É uma operação simplória essa. Pois se baseia em duas suposições opostas. De um lado a superioridade moral do que julga, de outro a imbecilidade crônica.
As categorias em que a redução do outro nos exalta encontram exemplos por todo canto na história e o século XX foi particularmente eficiente nessa redução, a ponto do próprio extermínio como aconteceu com a dissolução da Iugoslávia ou na África entre hutus e tusis ou nos procedimentos nazistas tão pertinazes em sua ocupação pela Europa. Nesses momentos, a coisificação do outro é tão eficiente que sua humanidade inteira foi removida e o que se vislumbra é tão somente suas chagas contagiosas.
Os estágios que autorizam o extermínio, claro, não são evidentes nos caminhos iniciais da objetificação, até porque o próprio sistema capitalista exige que seus usuários se transformem em objetos para seu bom funcionamento. Não se pode expropriar do outro o seu tempo de vida sem essa objetificação. Mas a mesma moralidade que autoriza o sistema a proceder assim será suficiente para que um grupo, pautado em valores superiores, enquadre outro grupo na região potencial de extermínio. É verdade que raramente chega a esse ponto, mas o processo é similar.
Geralmente a parte superior é formada por artistas, professores, ideólogos, cujos valores são maiores que aqueles que justificam a expropriação capitalista. A cultura parece carregar uma certa isenção da responsabilidade da expropriação mercantil da vida. Funciona como uma margem de refinamento em comparação à sanha exploradora dos capitalistas e seus emissários empresariais.
Esse papel da arte como algo diferente da mercantilização da vida, aliás, congrega admiradores pouco criativos, pois supõem que um artista é algo inerentemente superior por se manifestar a partir de seu metié.
Por isso serão os artistas, os professores, os demiurgos da elevação moral de seus admiradores, antes mesmo de se dobrarem ao carisma do populista de plantão.
O choro das viúvas não representa a perda, mas revela o sentimento de irmandade indissolúvel que acompanha os sensíveis seguidores do pai pelo seu infortúnio momentâneo. É o aspecto moral da arte. Já o choro dos órfãos guarda a definitiva derrota dos que, com a perda do pai, se tornam irremediavelmente desamparados. O aspecto imoral da ignorância, pois não sabem o que fazer sem o referente.
Os ignorantes se agregam por contágio enquanto os moralmente superiores por natureza e afinidade. Uns reconhecem-se nos iguais.
Outros se amparam nos iguais.
Essa clivagem social é importante em tempos em que a escassez de recursos e a incompetência para sanear problemas se torna muito acintosa. As demandas sociais precisam de profetas que coagulem as energias perigosas que emergem em tempos assim. Situações potencialmente desconcertantes podem promover descontroles em sociedades organizadas e em sistemas administrados. É preciso manter inimizadas fraternas no interior mesmo das famílias para que o controle massivo não seja percebido.
Enquanto os fracos se digladiam entre si não percebem quão similares verdadeiramente são.
Os lemas e emblemas da distinção justificada são poucos e simples. De um lado a tradição, família, pátria, deus. De outro o progresso e a melhoria geral da população. Então o cálculo generalizante é que um lado pensa em si mesmo e o outro pensa e se sacrifica pela humanidade inteira. São valores inquestionavelmente desiguais, como podemos perceber.
De um lado o eu egoísta, do outro o ser altruísta. Não é difícil ser seduzido por coisas assim. E uma vez feita a escolha fácil, transformar o outro em barata.
Então, sem mágica, o que deveria ser apenas diferenças se transforma em desigualdade, desonestidade e desumanidade.
E serão exatamente as pessoas que se julgam boas e moralmente superiores que farão o desserviço de erradicar do outro sua humanidade como desculpa para atacar suas escolhas e fomentarão o ódio acusando exatamente o outro de agir assim.
Certamente essas pessoas não imaginam que a opção que fazem sobre uma suposta superioridade moral poderia conduzir a resultados tão aviltantes, mas se esquecem de que os símbolos de escolha não são absolutamente aleatórios e estão calcados em princípios igualmente lineares e dicotômicos, justamente para assimilar a mentalidade cuja utensilhagem está disponível a identificar no símbolo o valor adequado.
Como se aceita o valor inquestionavelmente, a relação intrínseca entre valor, ética e moral se alinha. A ética, que compreende uma visão de mundo desigual acolhe o valor da desigualdade como natural e a moral considera tudo que é certo sobre essa naturalização. Pronto, está completa a linhagem que justifica o extermínio ou a redução do outro como equivalência.
Por isso a morte é o denominador comum tanto a viúvas quanto a órfãos. O que morre, de fato, não é o símbolo, mas aquele sentimento íntimo que torna tudo que vive teu próximo e que o irmana com todas as formas de vida. Esse sentimento que deveria conduzir a própria vida como sinergia, ao ser erradicado, isola o ser que se agrega no isolamento a sentimentos de desprezo, de orgulho, de vaidade intelectual. E o que parecia suficiente para gerir a política, guarda apenas na fogueira das vaidades seu movimento, um giro interior interminável, rodopiando do orgulho ao malefício, dínamo perpétuo de um tempo em que a realidade é apenas a projeção simulada do interior vazio do sentimento, apartado que foi do pensamento e da razão política do ódio.
Mas o extermínio quase nunca chega às vias de fato, pois a energia retroalimentada pela desigualdade encenada serve a maioria das vezes para exaltar o próprio ego. Por isso o movimento é inócuo e centrípeto, como um besouro que rola um pouquinho de bosta pelas planícies, sem outro propósito que rolar a bosta. Como se andasse o tempo todo sem sair do lugar. Pois não é feito para produzir nada. Então, a cada temporada, repetimos as mesmas ações, atitudes procurando reconhecer que a política tem lá seu valor e que as coisas vão melhorar. Com certeza.
Essa equação torna muito difícil encontrar semelhanças, pois só vê desigualdades e um humano se promove soberano ao topo da hierarquia da vida, de onde contempla a ralé que rasteja e chafurda na burrice.
Então o ser humano deixa de ser humano e se transforma no simulacro do poder.
Lá no paraíso onde habitam os símbolos, Lula e Bolsonaro brindam com um cálice de ácido pela festa democrática.
Livro completo pode ser encontrado no link abaixo:
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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