'Avó de Liniers' vive a 13 mil km do Qatar. Mas já é o símbolo desta Copa
Matheus Pichonelli, TAB
Uma mulher de 76 anos saiu sozinha pelo bairro de Liniers, em Buenos Aires, com sua bandeira alviceleste para celebrar a vitória da Argentina sobre a Polônia por 2 a 0, em 30 de novembro. Na esquina da rua Andalgalá com a Caaguazú, ela encontrou um pequeno grupo de torcedores alucinados pela classificação da seleção de seu país para as oitavas de final da Copa do Qatar.
Lá ela descobriu que não estava só.
Após o triunfo no duelo seguinte, contra a Austrália, a senhorinha voltou à mesma esquina e notou que o número de torcedores naquele local havia crescido. E cresceu ainda mais na celebrada classificação, nos pênaltis, ante a Holanda, nas quartas.
Quando Messi e companhia passaram o carro sobre a Croácia e carimbaram a passagem para a final da Copa, o mundo todo havia desembarcado naquela esquina de Liniers.
Parecia uma cena de “Macanudo”, série de quadrinhos criada por Ricardo Liniers Siri, cartunista homônimo do bairro agora famoso mundialmente: em torno da “avó”, uma multidão cantava uma versão adaptada do hit “Go West”, sucesso da banda Pet Shop Boys.
Lançada em 1993, a versão da dupla britânica (ah, as ironias) virou um hino do mundo em transformação após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética. Hoje (ironia 2) pode ser o hit da volta da Taça do Mundo para o lado oeste do planeta bola, sob a égide da hegemonia europeia há duas décadas.
O vídeo, gravado a 13.323 quilômetros do estádio Lusail, palco da vitória na semi, rodou o mundo e rendeu uma infinidade de memes — sim, os hermanos não competem com os brasileiros apenas no futebol.
Parte dos torcedores resumia a dificuldade em se concentrar nas tarefas do dia com a música na cabeça: “Abueeeeela, la la la la la”.
Hoje quem digitar o refrão da paródia no Google Maps é levado automaticamente para a já consagrada esquina de Liniers. Coisas do futebol.
Com meios para viralizar em instantes, a Copa do Mundo deste ano produziu imagens que permitiram intervalos de ternura pura no meio do deserto e das batalhas — como o carinho, em uma seleção de tantos filhos abandonados pelos pais, dos jogadores do Brasil com seus filhos à beira do gramado ou a dança de Sofiane Boufal, meio-campista do Marrocos, com a mãe depois da classificação história de sua equipe para as semifinais.
Se faltava à Argentina um amuleto em sua trajetória até a final, não falta mais. Esse amuleto tinha de ser simbolizado por uma “avó”, uma espécie de entidade e figura de muitos significados naquele país.
Desde 1977 (antes, portanto, do primeiro título mundial da Argentina no futebol), mulheres de rostos envelhecidos se reúnem na Praça de Maio, em Buenos Aires, para cobrar respostas sobre o paradeiro de seus netos, crianças sequestradas durante a ditadura enquanto seus pais (os filhos das avós) eram torturados e mortos. A figura das mães sem os filhos desaparecidos é um dos muitos símbolos da luta pelo respeito à ancestralidade e à memória de um país inteiro — uma causa abraçada, com direito a bandeira, pelos jogadores da atual seleção argentina.
Esse entrosamento não é de hoje.
Em 2010, sob o comando de Diego Maradona, a seleção argentina entrou em campo na defesa da candidatura da organização Avós da Praça de Maio para o Nobel da Paz daquele ano.
Com Messi à frente, os jogadores disputaram um amistoso antes do mundial, contra o Canadá, com uma bandeira de apoio ao grupo. Eles denunciavam o desaparecimento de milhares de pessoas durante o regime.
“Há dez Copas do Mundo que estamos te procurando”, dizia a campanha da qual Messi participou, quatro anos depois, ao lado de Estela de Carlotto, dirigente das Avós da Praça de Maio.
Após a campanha, Carlotto, personagem retratada no filme “Argentina, 1985” — candidato do país ao Oscar — pôde enfim abraçar seu neto.
O pianista Ignácio Hubert só descobriu sua identidade ao fazer voluntariamente um exame de DNA, foco da campanha pela qual Messi se engajou.
O craque usou suas redes sociais para dizer que estava “feliz e animado por terem encontrado o neto de Estela de Carlotto”. “Temos que continuar com a luta, porque ainda há muito mais.”
“Não é só o futebol que pode nos unir”, declarou Maradona na ocasião.
O Pibe de Oro, que um dia já foi o “pai” da atual geração de jogadores, é hoje homenageado em outra música que se tornou hit entre torcedores e atletas argentinos. Sua mãe — a avó da turma? — também é lembrada.
Na versão da torcida, é com ela que Maradona torce e vibra por Messi na busca do tri.
Não, não é só futebol que une um país. Mas como une.
A multidão em volta da “avó de Liniers”, o talismã da Argentina na Copa, é a maior prova.
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