Faltam poucos dias para fechar uma das portas do inferno
Não queremos apenas fechar as várias portas do inferno; queremos abrir a porta do paraíso. E isso exigirá ação do governo, ação dos governos estaduais e municipais, ação de bancadas, ação de movimentos sociais, ação de partido e mobilização espontânea
Valter Pomar*, em seu blog
A direção nacional da tendência petista Articulação de Esquerda aprovou a seguinte resolução:
1. Um frasista desconhecido cunhou a ideia de que a eleição de Lula não abriria a porta do paraíso, mas pelo menos fecharia a porta do inferno. A imagem é ótima e sintetiza o sentimento de muita gente, especialmente depois que um caminhão de mudança foi visto em frente a morada do cavernícola. Acontece que o inferno da política se assemelha ao de Dante, com seus nove círculos, e muitas portas ainda precisam ser fechadas.
2. A primeira das portas que precisa ser fechada é a da extrema direita. Os bloqueios nas estradas, os acampamentos nos quarteis e os atos de violência cometidos na noite de 12 de dezembro em Brasília (DF) confirmam que o enfrentamento da extrema direita é algo urgente e inescapável, inclusive para garantir que a posse de Lula ocorra em clima de comemoração cívica. Embora seja urgente, derrotar a extrema direita demandará um certo tempo e novas políticas. É preciso compreender que a extrema-direita escolheu “combinar as formas de luta”, mantendo uma pata nas instituições, outra pata nas ruas e o rabo na violência sistemática. Contra a violência da extrema direita será preciso luta política, luta ideológica, organização e uma ação permanente para investigar, desarmar, processar, condenar e prender. Parte disto depende, é claro, de uma mudança na postura de grande parte do judiciário e das forças de segurança pública. Será preciso, também, tomar medidas que competem, não ao Estado, mas ao conjunto das organizações e militantes de esquerda. Contra uma direita paramilitar, não basta toga e farda: será preciso, também, um pouco do espírito das torcidas organizadas. Mas a extrema-direita não se limita ao paramilitarismo. Os neofascistas, seus nomeados e seus aliados saíram das eleições 2022 governando estados importantes; controlam parte importante do Congresso nacional, sem falar de prefeituras pelo país afora; e seguirão ocupando cargos na judiciário e no executivo federal, como é o caso do presidente do BC. Por isso, não basta a vitória eleitoral de 2022: se faz necessário impor uma derrota política e institucional completa aos neofascistas, o que supõe por exemplo vencermos as batalhas eleitorais de 2024 e de 2026, nomearmos novos juízes para as cortes supremas e substituirmos todos os indicados por Bolsonaro nos postos de governo. Se faz necessário, também, construir, na maioria da nossa população, uma cultura democrática, popular, socialista, ao mesmo tempo nacionalista e internacionalista, antiimperialista e latinoamericanista. O que não se fará sem alterar as políticas públicas e as estruturas de educação, cultura e comunicação. E se faz necessário, ainda, colocar sob controle democrático as forças de segurança pública e as forças armadas. Deste ponto de vista, aplaudimos a nomeação de Flávio Dino para a Justiça, ao mesmo tempo que enfatizamos a necessidade de retomar a política de defesa dos direitos humanos, de fortalecer o sistema nacional de proteção, de erradicar a tortura, de interromper a violência institucional e o extermínio da juventude negra e pobre, de combater o punitivismo penal, de alterar a política sobre drogas e de revogar as políticas que estimulam o comércio e uso indiscriminado de armas. Por outro lado, afirmamos nossa divergência quanto a nomeação de José Múcio para a Defesa, bem como dos comandantes militares anunciados: o general de Exército Julio Cesar de Arruda, o almirante de Esquadra Marcos Sampaio Olsen e o tenente-brigadeiro do Ar Marcelo Kanitz Damasceno. Nossa divergência tem um motivo fundamental: com estas nomeações, terá prosseguimento a tutela militar, em tudo e por tudo antagônica a uma democracia que mereça o nome. E, como vimos, a tutela militar é ao mesmo tempo fonte e retaguarda da extrema direita. Portanto, não basta fechar a porta da extrema direita: é preciso fechar, também, a porta da tutela militar.
3. Também resta por ser fechada a porta do Centrão. O Brasil não é parlamentarista. O parlamentarismo foi derrotado no plebiscito de 1993. Desde então, o Brasil teve 8 eleições gerais; em 5 delas a esquerda conquistou a presidência da República, mas não conseguiu maioria no Congresso Nacional. A direita vem utilizando esta maioria congressual para chantagear, sabotar e no limite derrubar a esquerda (como fez em 2016). Na linha de frente desta operação está o chamado Centrão, hoje capitaneado por Arthur Lira (PP-AL). Derrotar o Centrão não é uma operação simples, especialmente neste momento de transição. A rigor, a derrota completa do Centrão exige vencer as próximas eleições congressuais e, ato contínuo, alterar a legislação política e eleitoral por meio dos mecanismos de consulta popular previstos na legislação e por meio de um processo Constituinte. Entretanto, se ainda não temos os meios necessários para impor uma derrota aos nossos inimigos, é preciso pelo menos acumular forças com este objetivo. Desse ponto de vista, consideramos equivocada a tática adotada após o segundo turno: manifestar com vários meses de antecipação o apoio da Federação Brasil Esperança à reeleição de Arthur Lira; dentre as alternativas disponíveis para viabilizar o cumprimento imediato do nosso programa, escolher exatamente aquele que dava mais margem de negociação para o Centrão, o da chamada PEC de transição; depositar expectativas no julgamento do orçamento secreto pelo STF e, frente as dificuldades, comprometer o PT com a resolução das mesas que altera parcialmente o chamado orçamento secreto. Segundo esta resolução das mesas, aprovada na sexta-feira 16 de dezembro, as emendas do relator passam a ter como teto máximo a soma das emendas individuais e de bancada; pelo menos metade das emendas do relator terão que ir para saúde, educação e assistência social; 80% do orçamento secreto será destinado a indicações dos partidos, 15% às indicações das presidências da Câmara e do Senado e 5% serão destinados a indicações do presidente e do relator da Comissão Mista de Orçamento; e as indicações das emendas deverão ser feitas exclusivamente por parlamentares. Evidente que constitui uma redução de danos em relação a situação anterior, mas agora vem com o dano político de ter recebido o apoio oficial da bancada do PT. Depois de tudo o que dissemos contra o orçamento secreto, este tipo de apoio é desmoralizante. Ademais, num momento de tamanha dificuldade orçamentária, é terrível avalizar que 19,4 bilhões de reais sejam destinados para o orçamento agora meio-secreto. Uma alternativa poderia ter sido construída, se desde o início não tivesse prevalecido a tática de ceder primeiro e negociar depois, como fizemos no apoio a reeleição de Lira. Vale lembrar que parte dos que conduziram este processo receberam recursos do chamado orçamento secreto e são suspeitos de terem votado em Lira, na última eleição da Mesa da Câmara. Seja como for, a tutela do Centrão segue sendo uma porta aberta do inferno.
4. Outra porta que ainda precisa ser fechada é a do neoliberalismo. O golpe de 2016 foi conduzida pela direita neoliberal gourmet. A política do governo Temer também foi conduzida pela direita neoliberal gourmet. Derrotada nas urnas por Bolsonaro, a direita gourmet deu apoio – através de suas bancadas parlamentares e através de seus meios de comunicação – à política ultraliberal conduzida por Paulo Guedes. Nas eleições de 2022, os neoliberais apostaram suas fichas em várias candidaturas, inclusive na de Lula, tendo como porta-voz mais vistoso o candidato e agora vice-presidente eleito. E, depois da vitória, fizeram todo tipo de pressão para que ficasse com eles o comando da economia, onde já têm presença garantida através do presidente do Banco Central, nomeado por Bolsonaro e cujo mandato termina em 2024. Ao indicar Fernando Haddad para ministro da Fazenda e Aloizio Mercadante para presidente do BNDES, o presidente Lula deu mais um sinal de que pretende mudar a política econômica. Mas como sabemos pela experiência de 2003-2005, não basta ter um ministro petista, é preciso ter uma política econômica que supere efetivamente o neoliberalismo. Assim, nos somamos aos que comemoram as indicações e seguiremos na luta em favor de políticas capazes de enfrentar e derrotar a ditadura do capital financeiro, do agronegócio e do setor mineral-exportador, contribuindo para a reindustrialização nacional e para a elevação rápida do bem-estar do povo brasileiro. Não há como derrotar o neofascismo, sem derrotar sua fonte: o neoliberalismo. A maneira como está organizada a sociedade brasileira e, como parte disso, a maneira como funciona o Estado brasileiro e seus marcos constitucionais foram incapazes de impedir o surgimento do neofascismo; mais do que isso, chegaram a estimular a onda neofascista, na exata medida em que estimularam o neoliberalismo. Ou alteramos o conjunto da sociedade, inclusive a institucionalidade, ou a ameaça neofascista continuará presente, como aliás o golpismo militarista esteve presente em toda a história republicana brasileira. Neste sentido, não cabe enxergar no bonapartismo judicial uma alternativa idônea contra o neofascismo.
5. Além das portas já citadas – a extrema-direita, a tutela militar, a tutela do Centrão, o neoliberalismo – cabe lembrar da porta do imperialismo. As declarações à imprensa do futuro ministro das Relações Exteriores (que já foi ministro da mesma pasta no governo Dilma) indicam a retomada de uma política multilateral e com ênfase na integração. Isso por óbvio precisa ser saudado como um grande avanço. Mas, evidentemente, 2023 não é 2003 nem 2015. A situação regional é muito tensa, como se pode ver pelos acontecimentos recentes na Argentina e no Peru. E a situação mundial também é muito mais tempestuosa. A guerra entre Ucrânia e Rússia é parte integrante da guerra estratégica entre Estados Unidos e China. O governo brasileiro que toma posse no dia 1 de janeiro de 2023 precisará de uma política nacional e internacional que nos permita, no contexto desta guerra global, converter nossa região num dos polos do mundo. E para isso não basta prestígio diplomático, nem tampouco basta ser um grande exportador de primários; para ser um dos polos do mundo, é necessário poder real, o que inclui capacidade científica, tecnológica, industrial. Deste ponto de vista, trata-se não apenas de retomar o que já foi feito, mas de dar passos além, entre as quais enfatizar a política latino-americana (e não apenas ou principalmente sul-americana) de integração; uma fortíssima politica para a África; e passos concretos para contribuir na superação da hegemonia estadounidense.
6. No dia 18 de dezembro, quando este texto foi debatido, grande parte do ministério do futuro governo Lula ainda não havia sido nomeada. E, evidentemente, tampouco foram nomeados os demais escalões do governo. Além dos nomes citados nos pontos anteriores deste documento, tivemos a nomeação dos ministros Rui Costa (Casa Civil) e Luiz Marinho (Trabalho); e da ministra Margareth Menezes (Cultura). Esperamos que as demais nomeações preservem a presença do PT e dos aliados de esquerda, alcancem a paridade e garantam uma presença de negros e negras correspondente a composição étnica de nosso país, assim como nosso diversidade regional e a necessidade de projetar quadros das novas gerações. Entretanto, para além da composição do governo, é preciso ficar atento para a necessidade de fortalecer a capacidade política e organizativa do movimento sindical, dos movimentos populares e dos partidos de esquerda, a começar pelo PT. Afinal, se por um lado o PT mais uma vez reafirmou sua condição de partido de massas, sem o qual não haveria vitória contra o neofascismo; por outro lado também é verdade que em nosso Partido acumulam-se problemas e debilidades imensas. Vamos lembrar que ganhamos quatro eleições presidenciais, mas não fomos capazes de impedir o golpe de 2016. Também pensando nisso, é preciso adotar um conjunto de medidas, a começar pela criação de núcleos presenciais do Partido nos locais de trabalho, nos locais de estudo, nos locais de moradia, nos espaços de cultura e lazer. Não basta ter presença nas redes, é preciso ter presença física na vida cotidiana da classe trabalhadora, participar de suas lutas, de suas entidades. Todo militante deve estar ligado a algum organismo de massa e a algum organismo do Partido. É preciso elaborar, implementar e avaliar de forma contínua um plano cotidiano de trabalho junto as nossas bases sociais e eleitorais. Este é um dos caminhos para que tenhamos um partido de militantes, não um partido de filiados ou de eleitores. Como parte da reconstrução de um partido militante, é preciso que o PT retome a contribuição financeira militante. E é preciso, para além desta medida essencialmente política, tenhamos iniciativas que nos permitam dispor de mais recursos, tornando possível ter sedes (que funcionem como centros culturais) e outras iniciativas de massa permanentes em cada cidade. É preciso que as direções funcionem, em âmbito nacional, em todos os estados, municípios e setores de atuação: reuniões periódicas, análise da situação, divisão de tarefas, balanço do realizado. Este método por si só não garante nada. Mas sem ele, nenhum dos problemas será efetivamente resolvido. É preciso impulsionar nossas atividades de formação e comunicação, de forma a atingir o conjunto da base partidária, social e eleitoral. Se quisermos ampliar a influência do PT, é preciso ter presença institucional, é preciso ter presença nos movimentos sociais, é preciso ter funcionamento adequado da máquina partidária, mas é preciso também e até principalmente ter presença na batalha de ideias. E, como base para isto tudo, é preciso que tenhamos mais capacidade coletiva de formulação acerca dos grandes problemas do mundo, do continente e do Brasil. Finalmente, é preciso enfrentar caso a caso, com paciência e método, os problemas políticos e organizativos que impedem nosso crescimento e/ou que reduzem nossa influência em vários estados e cidades. Nosso partido atua, no mais das vezes, em um ambiente que geralmente é hostil para as posturas militantes e socialistas. Anos de vida eleitoral e institucionalização partidária, as dificuldades dos movimentos sociais, a influência de concepções neoliberais e desenvolvimentistas-conservadoras, a perda da memória e da prática da vida coletiva, agravada pela profissionalização de atividades que antes eram realizadas de forma militante, tudo isso junto e misturado só será superado se houver um trabalho de “retificação” do funcionamento do nosso Partido e, no que couber, das demais organizações da esquerda partidária e social, com quem devemos buscar um trabalho cada vez mais frentista. Nossa história, inclusive nossa luta desde o golpe de 2016, reafirmaram o papel do Partido dos Trabalhadores como principal referência partidária dos trabalhadores com consciência de classe. Mas é preciso transformar referência em organização, o que inclui convidar para ingressar no PT a militância que foi às ruas. Neste espírito, damos início agora a uma campanha nacional de filiação ao Partido dos Trabalhadores.
7. O PT não surgiu somente para disputar eleições, exercer mandatos e governar. O PT surgiu para organizar a classe trabalhadora na luta pelo poder. Isso exige estarmos presentes e atuantes em todos os espaços da sociedade, nos locais de trabalho, estudo, moradia e lazer. Disputar eleições, exercer mandatos e governar constituem meios, não fins em si. Nosso grande desafio é construir um movimento político cultural de massas, organizar os movimentos sociais, disputar espaços institucionais e organizar o próprio Partido. Esses desafios estavam postos já no primeiro governo de Lula. Seguiram em todos os governos petistas e agora continuam postos. É fundamental que o PT consiga avaliar seus erros e acertos, para buscar cumprir nossas tarefas imediatas e históricas, reafirmando o socialismo como nosso objetivo estratégico e incidindo para que o quinto governo federal petista contribua para implementar reformas estruturantes.
8. A hora é de comemoração, de unidade dos setores populares, mas acima de tudo é hora de sair às ruas na luta permanente por nossas reivindicações imediatas e históricas. A ocupação das ruas deve começar na posse de Lula. Nesse espírito, reforçamos a importância da mais ampla mobilização para a posse de 1 de janeiro de 2023, assim como a necessidade de reforçar a segurança das caravanas que vão atravessar o país rumo a Brasília, reforçar a segurança da festa da posse e reforçar as medidas de proteção individual da militância em geral e das lideranças em particular, a começar pelo eleito presidente da República.
9. Retomando a imagem com que iniciamos este texto, não queremos apenas fechar as várias portas do inferno; queremos abrir a porta do paraíso. E isso exigirá ação do governo, ação dos governos estaduais e municipais, ação de bancadas, ação de movimentos sociais, ação de partido, mobilização espontânea de dezenas de milhões de pessoas, guerra cultural e uma estratégia que nos permite não apenas evitar os erros cometidos quando fomos governo federal, inclusive os erros que contribuíram para o golpe de 2016, mas também uma estratégia que nos ajude a ir além: queremos mais e melhores políticas públicas para melhorar a vida do povo, mas também queremos transformações estruturais que nos permitam construir um país desenvolvido, com soberania nacional, democracia popular, bem estar social para todos e todas, um país socialista.
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