Direita

O bolsonarismo na perspectiva de Darcy Ribeiro

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A compreensão do autor sobre o populismo enquadra-se mais na ideia de uma antielite que rompe com os costumes políticos tradicionais e introduz posturas histriônicas opostas à circunspecção típica do estilo patricial

Imagem: Nara Quental

Vinicius Melleu Cione*, Brasil Debate

Darcy Ribeiro (1922-1997) foi etnólogo, educador, romancista, sociólogo e político. Essas foram as “muitas peles” que usou numa vida marcada pela insubmissão e militância. Definia a si mesmo como socialista e como um “faminto de fazimentos”.

O socialismo “trabalhista” preconizado pelo autor, ainda que tenha variado em radicalidade ao longo da vida, estava em conformidade com sua avaliação sobre a correlação de forças num país com uma classe dominante tão atrasada como a brasileira: uma revolução viável que passasse por um amplo programa de reformas. Considerava que o único mérito das velhas classes dirigentes locais foi o processo exitoso de unidade nacional e uniformidade étnica, admitindo, porém, ter sido caracterizado pela mais profunda violência e repressão, as quais ainda hoje marcam a atuação de um punhado de privilegiados em torno da manutenção da ordem numa sociedade profundamente desigual.

Em sua obra O dilema da América Latina, integrante de uma ambiciosa hexalogia de estudos sobre antropologia da civilização, Darcy contrapõe as Américas Ricas do hemisfério setentrional às Américas Pobres, debatendo as classes sociais e estruturas de poder características das sociedades latino-americanas, bem como as lutas travadas entre as forças que desejam manter suas ordenações sociais desigualitárias e as que pretendem transformá-las. O dilema da América Latina consistiria exatamente na contradição dialética entre a manutenção da hegemonia do estamento gerencial estrangeiro sobre uma classe dominante local dependente e a radicalização revolucionária em torno de um projeto socialista autônomo.

Darcy Ribeiro e a estrutura de classes no Brasil de hoje

Ao debater a estratificação social do subcontinente, Darcy propõe uma tipologia que partisse de Marx, uma vez que se pressupõe uma contradição antagônica entre as classes dominantes e as subordinadas, mas exige que se identifiquem precisamente os componentes de cada estrato social no contexto latino-americano. Ele considerava que a confusão existente nas categorias políticas tradicionalmente empregadas para o entendimento da realidade regional se devesse à velha alienação colonial, que tentava aplicar conceitos estrangeiros (europeus) sem um exame mais preciso das condições locais que permitisse uma explicação com termos próprios.

Nos países latino-americanos, estabeleceu-se um patronato tradicional primário-exportador, um parasitário ligado ao tráfico colonial entre outras atividades mercantis e um patriciado civil e militar, classes dominantes arcaicas estruturadas no período colonial e que até tiveram divergências pontuais entre si, mas eram diametralmente contrapostas às classes subalternas. Há uma inaptidão histórica para a renovação por parte dessas sociedades, as quais perpetuaram sua dependência mesmo com a emancipação política formal e até hoje foram incapazes de uma abertura liberal-burguesa digna de nome, limitando-se à contenção repressora dos levantamentos sociais gerados por uma ordem desigualitária.

Por mais que Bolsonaro se apresente como o legítimo representante do estamento gerencial estrangeiro, batendo continência à bandeira dos Estados Unidos ou vestindo-se de astronauta para comemorar o 4 de julho, e apresente a ideologia liberal típica do patronato das tradicionais repúblicas-fazendeiras locais, ele não pode ser considerado um representante do velho patriciado latino-americano. Não é um representante orgânico da burguesia, mas um aventureiro que se projetou depois do esvaziamento dos quadros tradicionais que perpetraram o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma, portanto não lhe interessa tanto a estabilidade do sistema em si, dispondo-se a descredibilizar outros poderes que contestem o do Executivo.

Para Darcy, ele se enquadraria mais como uma representação populista que reverencia a ditadura regressiva iniciada a partir do golpe empresarial-militar de 1964. A compreensão do autor sobre o populismo enquadra-se mais na ideia de uma antielite que rompe com os costumes políticos tradicionais e introduz posturas histriônicas opostas à circunspecção típica do estilo patricial. “Fazem-no, porém, com o único propósito de substituir-se ao patriciado como novos agentes da velha estrutura de poder, porque se mantêm fiéis aos interesses fundamentais da oligarquia latifundiária e do grande empresariado urbano, nacional ou estrangeiro”[1].

Fora do governo, apresentam-se dispostos a uma renovação de tudo e seus compromissos são alterados ao gosto do eleitor. No governo, têm que conciliar a retórica demagógica com os compromissos reais que assumiram para a preservação da ordem vigente. Não costumam estar estruturados em partidos de estilo patricial, sendo suas organizações muito mais aglomerados de adeptos pessoais do líder.

E, por fim, além da demagogia manifesta na linguagem fácil de “salvador da pátria”, caracterizam-se pelo oportunismo político, já que, diferentemente dos líderes autocráticos, dependem do processo eleitoral como via de acesso ao poder, recorrendo a compra de votos (utilização dos recursos do programa Auxílio Brasil), falsificação dos resultados eleitorais (contestação das urnas idealizada por ele e por Anderson Torres) e alianças mais inesperadas (com Fernando Collor, por exemplo).

O Brasil viveu, nos anos recentes, um momento profundamente antagônico ao projeto emancipatório inspirado na Revolução Cubana que Darcy tanto defendeu. Na atualidade, há uma representação mais progressista, que seria identificada como “reformista” para o mesmo autor, mas o risco concreto de um eventual retorno desse populismo de extrema direita, mesmo sem a figura do cidadão Bolsonaro em si, é concreto, como o demonstra a Itália ou os golpes recentes no Peru e contra a candidatura de Cristina Kirchner na Argentina.

Somente uma organização efetiva e constante das forças populares, sem um espírito otimista do “já ganhou”, podem garantir que o atual governo Lula consiga se manter, a despeito do extremo conservadorismo do Legislativo, e ir além dos compromissos assumidos em campanha.

Citação

[1] RIBEIRO, Darcy. O dilema da América Latina: estruturas de poder e forças insurgentes. Petrópolis: Vozes, 1983, p. 163.

*Vinicius Melleu Cione é mestrando em História do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM-USP).

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