A tentativa de terceirização da responsabilidade pelos atos golpistas soa absurda para a sociedade, uma vez que os próprios bolsonaristas postavam orgulhosos as imagens do vandalismo, acreditando que estavam em algum tipo de processo revolucionário de libertação nacional
Leonardo Sakamoto*, em seu blog
Diante das imagens mostrando a destruição e o roubo perpetrados por golpistas nas sedes do Congresso Nacional, Palácio do Planalto e STF, uma família em Rio do Sul (SC) grita com a TV: “Globo petista! Isso aí tem petista infiltrado para tumultuar!” Reproduzem, dessa forma, a explicação que está circulando em grupos bolsonaristas: de que as cenas de violência foram forjadas para tentar deslegitimar os pedidos de “intervenção militar”.
A coluna está coletando relatos e vídeos de leitores, desde o domingo (8), incrédulos com a reação de seus familiares defendendo que o quebra-quebra dos prédios públicos, as agressões a agentes de segurança e jornalistas e até o espancamento de um cavalo da Polícia Militar foram produzidos por dezenas de infiltrados do PT, do PSOL, do MST e do MTST.
A análise de mensagens em grupos bolsonaristas mostra que os mais radicalizados apoiam a depredação enquanto os menos afirmam que ela é fruto de militância paga da esquerda. Influenciadores da direita, como Monark, e políticos, como o vereador Fernando Holiday, são exemplos que levantaram a bola sobre infiltrados.
A tentativa de terceirização da responsabilidade pelos atos golpistas soa absurda para o restante da sociedade, uma vez que os próprios bolsonaristas postavam orgulhosos as imagens do vandalismo, acreditando que estavam em algum tipo de processo revolucionário de libertação nacional.
Como disse o colunista do Uol, o jurista Wálter Maierovitch, esses tipo de vídeo vai muito além de evidência produzida contra si pelo próprio criminoso, é confissão de culpa. E pode ser usado legalmente contra ele.
Mesmo assim, há um processo de negação de uma parte dos seguidores do presidente que não quer acreditar que pessoas que compartilham com elas dos mesmos valores, muitas vezes seus vizinhos, amigos e parentes (alô, ministro José Múcio) se prestariam a um ataque de caráter terrorista às sedes dos três poderes.
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Esse processo, que tenta dissociar os impactos negativos do discurso violento do bolsonarismo com a violência em si, buscando terceirizar responsabilidades quando ocorre uma cobrança pública, foi sistematicamente executado pelo próprio Jair e seus aliados.
Quando um grupo de seus seguidores, que estava no acampamento em frente ao quartel-geral do Exército, atacou a sede da Polícia Federal, em Brasília, e queimou ônibus e carros, vídeos com essas imagens foram manipulados para incluir de forma tosca gritos de “Fora, Bolsonaro!”. O objetivo era culpar a esquerda pela obra da extrema direita.
E após outro grupo de apoiadores que estava no mesmo acampamento planejar um atentado e plantar uma bomba em um caminhão de combustível para explodir o Aeroporto de Brasília, ele se apressou em dizer que o sujeito não tinha a ver com o bolsonarismo. Apesar disso, os envolvidos demonstraram um incrível alinhamento ao discurso do então presidente.
Da mesma forma, ele tentou, agora, vender a ideia de que depredações e invasões, como as deste domingo, têm relação com protestos da esquerda de 2013 e 2017. Mas, paradoxalmente, de forma covarde, não repudiou veementemente o ocorrido, porque sabe que seria o equivalente a abandonar milhares de seguidores que estavam apenas cumprindo o que ele pregou durante anos.
Essa tentativa de terceirizar as responsabilidades pelos atos golpistas tem sido uma constante em conversa nos aplicativos de mensagens ou em comentários de redes sociais. Mensagens culpam “petistas vestidos de amarelo” pelo caos cometido por bolsonaristas uniformizados.
O malabarismo discursivo chega ao ponto de afirmar que os “manifestantes pacíficos” não quebraram as portas e vidraças para adentrar nos prédios públicos, apenas “usaram um caminho que já havia sido aberto por infiltrados”, de forma que não teriam cometido crime. Vale ressaltar que a própria presença deles naqueles locais, naquelas circunstâncias, já era um crime.
Durante anos, Bolsonaro foi eficaz em garantir que uma parcela de seus seguidores não consumisse informações de outras fontes que não as chanceladas por ele. Isso criou uma espécie de “bolsoverso”, um universo particular e paralelo, em que cloroquina funciona, vacinas matam, urnas são fraudadas, o golpe foi dado por Lula e Alexandre de Moraes é um reptiliano. Apartadas da sociedade, esse grupo opera em uma outra lógica de interpretação do mundo.
Trazer à realidade a família que, na frente da TV, acredita que os golpistas bolsonaristas eram infiltrados petistas levará muito tempo e talvez não seja possível. Esse é o principal dano causado por Bolsonaro à democracia brasileira.
*Leonardo Moretti Sakamoto é um premiado jornalista brasileiro. Além da graduação em jornalismo, possui mestrado e doutorado em ciência política pela Universidade de São Paulo.
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