Com os ataques em Brasília, Bolsonaro conseguiu um grande trunfo: mostrar ao adversário que o ódio ainda pulsa e está mais incrustado na sociedade brasileira do que supunha o discurso de Lula. Bolsonaro é o presidente que levou o medo para o centro do poder. Passou quatro anos na defensiva, queimando energia para evitar que alguém ferrasse com ele e sua família. O medo de um presidente assombrado deixou um país inteiro refém de seus fantasmas
Matheus Pichonelli, TAB
Nove em cada dez brasileiros condenam, segundo o Datafolha, os atos golpistas promovidos por fanáticos bolsonaristas em Brasília no domingo (8). A maioria (55%) enxerga as digitais de Jair Bolsonaro (PL) nos crimes.
Aqui e ali, apoiadores do ex-presidente aparecem em público para repudiar o terror. Dão a impressão de que estão saltando do barco desancorado que por anos ajudaram a manejar.
O golpe não deu certo e, por essa razão, chega a ser tentador cravar que Bolsonaro é o grande derrotado diante da repulsa da grande maioria da opinião pública em relação ao desserviço oferecido por seus fãs.
Mas a análise requer cautela.
Primeiro porque há muito jogo de cena nas manifestações públicas de pastores, parlamentares e empresários que ajudaram a introjetar o veneno golpista nas artérias da democracia e agora, emparedados e com a cara mais lavada, dizem não ter nada com isso.
Uma regra básica de qualquer relacionamento humano: as pessoas mentem.
Judas traiu Cristo com um beijo no rosto, e não dizendo que era preciso entender as motivações dos algozes romanos e fariseus.
Muitos dos pronunciamentos soam tão verdadeiros quanto uma nota de R$ 3.
Burrice tem limite, e ela não ousa ultrapassar a linha riscada com giz pela opinião pública.
(Se o golpe tivesse vingado, não tenham dúvida, a conversa desses apoiadores supostamente assombrados seria outra).
Dito isso, Bolsonaro pode ter conseguido exatamente o que queria com a balbúrdia, mesmo tendo saído aparentemente chamuscado da história.
Lula (PT), quando foi eleito, anunciou que o amor havia vencido o ódio. Essa foi a tônica de toda a campanha.
O novo governo tinha uma agenda depois da posse, selada em uma cerimônia impecável do ponto de vista da segurança.
A subida na rampa do Palácio do Planalto com representantes diversos da sociedade brasileira trazia, no ato simbólico, um compromisso claro para os dias seguintes. Tudo isso está agora paralisado ou ofuscado.
Na quarta-feira (11), por exemplo, a jornalista e ativista Anielle Franco, irmã da vereadora assassinada Marielle Franco, tomou posse como ministra da Igualdade Racial, pasta recriada para colocar a pauta antirracista, relegada pelo último governo, no centro da agenda pública.
Ela tomou posse com um discurso histórico. E, no entanto, só se falava de outra coisa no Brasil da véspera e do dia seguinte.
Este é, em si, um dos efeitos rebotes das ações criminosas de domingo: o bolsonarismo voltou a pautar o país.
Um governo que prometia reconstruir as bases de uma sociedade fragmentada através de debates e políticas públicas precisa agora reunir tempo e energia para uma reconstrução, até aqui literal, feita com tinta, tijolo, vidro, argamassa e ferramentas de restauro.
Esse trabalho ocorrerá de forma paralela aos esforços para “limpar” os prepostos do bolsonarismo que ainda residem em postos-chave da administração. Ou dá para confiar em um Gabinete de Segurança Institucional que dispensa 36 soldados da Guarda Presidencial horas antes do estouro da boiada?
Ou nos aliados remanescentes de um (agora ex) secretário que muda a estratégia de segurança, tira férias, guarda a minuta de um projeto golpista na gaveta e vai ao encontro do antigo chefe?
Bolsonaro conseguiu um grande trunfo: mostrar ao inimigo que o ódio ainda pulsa e está mais incrustado na sociedade brasileira do que supunha o discurso do vencedor.
Essa presença, como uma nuvem carregada, se manifesta em cada agente de segurança que falhou ao permitir o avanço da turba. Quem falhou? Um ou muitos? Todos ou só alguns?
Lula, desde domingo, anda desconfiado de tudo e de todos. E tem razão para isso.
É possível que, a partir de agora, redobre cuidados e passe mais tempo preocupado com a própria sombra. Isso, de saída, tende a limitar, devido aos riscos envolvidos, o contato com a própria população. Nunca se sabe quando o responsável por sua segurança vai trair seu compromisso e abrir novamente as comportas para o caos.
E um presidente assombrado e sem contato com a realidade ao seu entorno é um presidente enfraquecido.
Só não dá para dizer que a paranoia será agora um guia do novo governo porque ela se refere a um delírio sistematizado. E o que se viu domingo não foi um delírio.
Bolsonaro é o presidente que levou o medo para o centro do poder. Passou quatro anos na defensiva, queimando pestanas e energia para evitar que alguém ferrasse com ele e sua família, como admitiu na reunião de 22 de abril de 2020.
O medo de um presidente assombrado deixou um país inteiro refém de seus fantasmas.
Esses fantasmas deveriam ser exorcizados ao fim de seu governo, mas seguem espalhados por toda parte.
O medo de que o 8 de janeiro se repita já orienta todas as ações das autoridades, e não só do Executivo.
Não deixa de ser uma vitória do candidato derrotado à reeleição.
Os atentados contra as sedes dos Três Poderes foram, antes de tudo, um teste de fidelidade.
A cada vidraça quebrada ou piscadela de um guarda para a turba seguir em frente, mais certeza tinha Bolsonaro de que oficiais bem posicionados no entorno do poder seguirão ao seu lado, e não ao de Lula, para facilitar ou mesmo abrir as comportas do caos, como sempre quis o capitão desde seus tempos de (mau) militar.
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