Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Questões sobre a natureza da inteligência e da criatividade exigem o reconhecimento de fronteiras incomodamente polimórficas, pois usualmente acreditamos que a inteligência contempla a criatividade.
Einstein dizia que sinal de inteligência não é conhecimento, mas criatividade e certamente devido a essa fala aparentemente estranha a nutrição da inteligência no mundo colonial prescindiu da criatividade.
A polêmica atual envolvendo um aspecto perturbador das tecnologias de estase é a capacidade de computadores usarem suas bites como fariam os criadores do início da modernidade.
Shakespeare, Da Vinci, Cervantes, dentre outros, estavam gerando a modernidade em cada traço, em cada linha. Eram demiurgos de um mundo que ainda não se podia vislumbrar, mas cujo conjunto, visto da distância adequada, buscava um sentido.
Pois, esse mundo está pronto, mas não acabado. Suas bases podem ser expostas sem medo de contrariar seus mecanismos. A modernidade, que pode ser definida como o surgimento do indivíduo e da heteronomia numa conjugação eficiente, foi aprimorando em cada passo da jornada rumo ao futuro o pavimento seguro da dicotomia, permitindo sempre que ao propósito de um senhor se rebelasse um servo, ainda que a sua servidão fosse desde o início, voluntária.
A escapatória sempre esteve ao alcance de todos, já que era o componente necessário a que o sentimento de liberdade pudesse ser expresso. A liberdade sempre foi, nesse tipo de mundo, o capital fundamental da consolidação voluntária da dominação.
Era preciso escolher a liberdade, como agora é preciso escolher a democracia, ou todas as verdades inerentes a um sistema de escolhas, característica fundamental da liberdade. Mas a heresia tinha que estar desde o princípio presente na tomada de decisão.
Das verdades inerentes para que a escolha fosse feita como devido, a mais importante consiste em admitir que somos superiores enquanto espécie por nutrirmos o pensamento e, antes dele, a racionalidade. Esse simples verdade fez toda a diferença para um mundo em que a liberdade é fundamental. Se nossa soberania está contida em um lugar superior do corpo, os nutrientes dessa sua veracidade são tão naturais quanto qualquer evidência, sem a necessidade de interpretação.
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Mas esse corpus de evidências que é transportado diretamente da emissão da verdade, dispensa certos labores, bastando simplesmente o atestado de superioridade conferido pela racionalidade. Quem há de contrariar essa coisa que temos como uma dádiva de deus bem dentro de nossa cabeça.
Então a soberania pode se realizar com outra forma de nutriente, digamos mais passivo, o conhecimento.
Ele tem como benefício convencer que uns ocupam um lugar especial na ordem racional dado pelo suporte de mais ou menos conhecimento. O conjunto de prédicas que vão com ele até o nicho de certezas de cada um é suficiente para aceitar todos, digo sem pudor, todos os níveis de desigualdade, pois o copo do conhecimento sempre está meio cheio e meio vazio, depende apenas do ângulo que se observa.
Dotado dessa habilidade extraordinária, o ser humano foi criando mecanismos pragmáticos para justificar além de tudo que a racionalidade é também instrumental capaz de trazer benefícios para todos, não só para aqueles que a utilizam como um labor.
Mas como a instrumentalização da racionalidade não é vocacional, mas intencional em seus procedimentos criativos, acabamos por aceitar que temos como componente inercial a criatividade. No livro Eu, robô, quando, para atestar a inferioridade do mecanismo um humano questiona que ele saberia pintar a capela sistina ou se comporia uma sinfonia como Brahms a resposta é imediata: não, e você?
Estamos vivendo um momento em que a polêmica de computadores criando arte na forma de uma estética visual singular ou criando textos na forma de livros originais ganhou espaço vantajoso na mídia global.
O departamento de Educação da cidade de Nova York decidiu banir o ChatGPT para evitar que alunos usem o robô conversador como “cola” para escrever textos e resolver problemas de matemática, entre outras tarefas que a tecnologia pode lidar.
O ChatGPT é um robô conversador que viralizou por ter resposta para tudo que lhe for perguntado.
Para justificar a proibição na cidade alegou-se que “embora a ferramenta possa fornecer respostas rápidas e fáceis para perguntas, ela não desenvolve habilidades de pensamento crítico e resolução de problemas, essenciais para o sucesso acadêmico e ao longo da vida”.
Embora não seja qualquer pessoa que possa questionar a função da educação como mera reprodutora dos valores sociais, replicando em sua estrutura organizacional instâncias de desigualdade a ser continuamente naturalizada, certamente não é difícil perceber que a criatividade como uma habilidade precisa ser continuamente estimulada e a educação não precisa de sofrer incômodos daqueles que se insurgiriam continuamente contra conceitos meramente reprodutivos na forma atual da educação.
A função da educação formal no mundo inteiro é a mesma, ensinar o estudante a obedecer às normas e regras sociais e criatividade não condiz com isso. A passividade ensina ao longo da vida educacional do indivíduo replica a passividade no interior da família e no mundo laboral, sacrificando o presente em nome do futuro, do sucesso futuro, das realizações futuras.
Que máquinas sofisticadas criem objetos, artes, livros não me parece sofrer nenhuma objeção, exceto entre aqueles que acreditam que o ser humano, carregando de modo capenga sua racionalidade, é mesmo superior não só a todas as outras espécies pautado no darwinismo, mas também ao próprio ser humano, justificando que uns são mais iguais que outros, uns são mais inteligentes que outros, uns são superiores a outros. E não há maior prova de ausência de criatividade para os que acreditam nisso.
Einstein disse uma vez que qualquer um que aceite cumprir ordens não precisa de um cérebro, já que a medula espinhal lhe basta.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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