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O crime desejado: Folha de S.Paulo tem pressa

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Se os militares estão no alvo de Lula, é o presidente que está no alvo dos militares. Pelo que se pode ler, o serviço está pendente, e a Folha de S.Paulo está com pressa

Capa da Folha de S.Paulo de 19/01/2023

José Isaías Venera*

A capa da Folha de S.Paulo de quinta, 19, gerou polêmica. E não poderia ser diferente. Diante de um cenário de ataques terroristas, que não se resumem às ações do dia 8 com a invasão dos prédios dos Três Poderes por golpistas e apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro, a Folha se mantém coerente, defensora das forças reacionárias.
Em 20 de março de 1964, a Folha estampou na capa a manchete: “São Paulo parou ontem para defender o regime”.

Foi uma declaração de apoio à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, movimento que defendia a tomada do poder pelos militares, o que aconteceu 12 dias depois, em 1º de abril. Na matéria, uma frase foi ainda mais reveladora, a de que os manifestantes têm “disposição para lutar, em todas as frentes, pelos princípios que já exigiram o sangue dos paulistas para se firmarem”.

O sangue de brasileiros nunca parou de ser derramado

Entre os recentes, o crime por motivação política de um apoiador de Bolsonaro contra o militante do PT Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu (PR), durante sua festa de aniversário em 9 de julho de 2022. Agora, com o fracasso da tentativa de golpe pelos ‘homens de bem’ no dia 8 de janeiro deste ano, o serviço fica pendente.

Se os militares estão no alvo de Lula, como sugere a manchete, é o coração do presidente que está no alvo dos militares, como expressa a montagem. O ponto de choque no vidro avariado se alinha à posição do coração do presidente. Mas a imagem não mostra um militar apontando a arma? A imagem não mostra, mas a manchete indica isso. Ela funciona como um índice — se os militares estão no alvo de Lula, por dedução o presidente deve entrar na mira deles.

A mensagem na “múltipla exposição”

A imagem foi produzida por técnica de “múltipla exposição” sobrepondo duas fotografias (dois frames) de forma analógica, gerando uma criação artificial. De início, paira a dúvida sobre os limites éticos do uso de imagens no jornalismo. Montagem em capa é uma estratégia antiga, e é verdade que é mais comum em revistas semanais, como no caso da Veja. Em uma montagem, o objetivo é produzir uma mensagem visual. Quando a estratégia (montagem) fica evidente ao leitor, não há deslize ético. Nesse caso, a imagem funcionaria como um texto opinativo no qual se passaria um ponto de vista sobre um acontecimento. Bem diferente é a função da fotografia no jornalismo, que deve mostrar o ‘real’ no fluxo dos acontecimentos, sem nenhuma espécie de manipulação, a não ser o enquadramento e os efeitos de ajustes como foco, cores etc.

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A montagem — ou, se preferirem, a múltipla exposição — não deixa evidente o uso dessa técnica. É certo que na legenda consta a informação: “Foto feita com múltipla exposição mostra Lula ajeitando gravata e vidro avariado em ataque”. Diz, mas esclarece pouco. A imagem é um signo, em princípio, sem código; expressa os traços do seu referente. Uma montagem é um signo de outra ordem, já nasce no registro da conotação. Quer dizer algo a mais do que mostra, por isso expressa uma mensagem que se passa sem que, necessariamente, tenha vínculo com um existente. Por exemplo, a parte do vidro com avaria indicando um possível tiro no coração do presidente não traz um correspondente real, mas funciona como uma metáfora — quando, neste caso, utiliza-se de uma montagem para designar outra coisa.

O cinismo da Folha

A fotojornalista responsável pela imagem, Gabriela Biló, se manifestou em seu perfil no Twitter: “Tem quem veja morte, tem quem veja resistência…”. Mesmo que seja involuntário, beira o cinismo. No fotojornalismo a imagem integra uma teia discursiva. Ela não significa isoladamente. É no contexto da capa que a significamos, ou seja, na relação com a manchete, a linha de apoio, o texto de abertura, a posição da imagem na página e nas relações com os outros elementos no conjunto geral.

O vidro avariado aponta para a tentativa de golpe do dia 8, evento ainda fresquinho na memória social. De início, a imagem enche nossos olhos, mas rapidamente deslocamos o olhar para a manchete, que se associa aos vários discursos sobre a posição dos militares neste contexto. São as discursividades que amarram nossa realidade que dão as condições de interpretação dos novos discursos.

Inversamente à justificativa de Biló, a interpretação não é aleatória e totalmente subjetiva, já que no jornal estão dadas as condições materiais para a sua interpretação. Se os militares estão no alvo de Lula, é o presidente que está no alvo dos militares. Pelo que se pode ler, o serviço está pendente, e a Folha de S.Paulo está com pressa.

*José Isaías Venera é jornalista e professor da Univille.

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