Esquerdex: parece de esquerda, pensa que é de esquerda, mas não é
Anderson Pires*
O período de obscurantismo que foi o Governo Bolsonaro fez estragos imensos. A sociedade brasileira foi bombardeada por ideias e conceitos absurdos de toda ordem. O ministério de Bolsonaro repercutia pérolas do pensamento mundial, como o perigo do globalismo comunista e até discussões sobre a Terra Plana. No campo dos direitos humanos, a ex-ministra Damares Alves definia sua percepção sobre a questão de gênero com a célebre frase: “menina veste rosa, menino veste azul”.
Dos direitos humanos a economia, sobraram aberrações em todas as áreas. Não tem como esquecer o ex-ministro Paulo Guedes apontando que um dos problemas da economia brasileira era o dólar que estava muito baixo e as empregadas domésticas que viviam na Disney. Tinha de tudo: ambientalista que defendia desmatar e traficar madeira, artista que era contra a lei de incentivo à cultura, dirigente negro que defendia a escravidão, médico contra a ciência e presidente que relacionava vacina à AIDS e mutações.
O cenário era tão esdruxulo, que qualquer um que se posicionasse contra o governo Bolsonaro já era qualificado como de esquerda. Entendia-se que ser contra as atrocidades propagadas pelo ex-presidente e por seus ministros fosse suficiente para estabelecer a orientação política, independentemente do posicionamento sobre uma série de outras questões que definem alguém politicamente.
Mas havia e ainda há os que acreditam que ser de esquerda é um estereótipo, somado à incorporação de algumas pautas de cunho humanístico e identitário, mesmo que não se contextualize classes, nem se leve em conta os fundamentos à democracia. O esquerdismo desse grupo esbarra nas próprias bandeiras, quando no centro da situação está alguém considerado adversário político. Nessa hora, expõem o caráter seletivo do seu posicionamento. Houvesse coerência, as pautas que defendem não seriam determinadas pelo indivíduo a quem se aplica. Afinal, conceito é conceito.
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Assim como os bolsonaristas, que chamavam seu líder político de mito, verificamos, também, entre os eleitores do Lula aqueles que o idolatram, ao ponto de perderem a criticidade sobre temas que, de alguma maneira, merecem críticas. As defesas são sempre pautadas pela lógica das boas intenções, como se tudo que viesse do ídolo não fosse passível de análise.
A escassez de conceitos é absurda em quem adota essa postura de rebanho, porque não contribui para o debate sobre o modelo de Estado que podemos ter no Brasil. Sabemos das dificuldades para o governo realizar mudanças bruscas, dadas as condições políticas e materiais que, objetivamente, não permitem radicalizar em direção ao socialismo. O próprio Lula não tem qualquer inclinação para uma política que radicalize à esquerda. Sua orientação esteve sempre mais próxima do centro, com viés social-democrata, incentivo ao consumo e avanços humanitários.
Entender os conceitos que fundamentam a orientação política é o primeiro passo para se fazer uma leitura mais apurada dos atores políticos. Não basta uma análise com base no carisma, no estereótipo e na defesa de pautas que são direitos independentemente do espectro político. Uma pessoa não se qualifica como de esquerda por ser negra, com cabelo black power ou pelo uso de expressões “da quebrada”. Fosse assim, o vereador de São Paulo, Fernando Holliday, poderia ser descrito como um ativista contra o racismo, o que definitivamente não é.
Da mesma forma, o inverso também é válido. Pautas identitárias são causas humanitárias, que podem ser defendidas por pessoas de direita ou de esquerda. É verdade que, na hora que se combate o racismo, a homofobia ou xenofobismo, de alguma forma também se combate a desigualdade social. Afinal, são esses segmentos que sofrem maior exclusão.
Mas se a abordagem de quem milita em torno desses temas não é classista, a transformação que busca em relação aos preconceitos praticados pela sociedade, não compreende a dimensão do que é a luta de classe e o embate entre direita e esquerda.
Esse é um conceito complexo para muitos dos movimentos sociais. Por exemplo: a luta pela terra que o MST promove é um dos mais belos exemplos de combate à desigualdade, porém, não podemos dizer que seja um agrupamento socialista. Por mais que alguns dos seus líderes ressaltem autores e figuras históricas vinculadas à luta de classes e à construção do socialismo, o movimento está inserido na lógica capitalista e atua, inclusive, por meio de mecanismos como o cooperativismo e a adoção de política de preços do mercado. Cooperativismo não é sinônimo de socialismo.
Mais difícil ainda tem se tornado distinguir capitalistas e trabalhadores no Brasil. Em um país com tanta pobreza, a diferenciação de classe é confundida com capacidade de consumo. Logo, o discurso em torno de quem representa o empresariado brasileiro é distorcido, porque, se a referência for o consumo, um pequeno comerciante tem acesso a alguns bens, que não pode ter o trabalhador que ganha salário mínimo. Mas ambos pertencem à mesma classe social.
Isso gera uma percepção equivocada sobre a origem do problema. A grande massa do empresariado brasileiro, cerca de 99%, é formada por pequenos e micros empresários. Isso não significa que detenham as riquezas do país, mesmo que tenham mais condições de consumir que os seus empregados. Aquele 1% é que fica com o bolo.
Da forma como a discussão é feita, principalmente pelos políticos, o grande capitalista é colocado na condição de benfeitor, gerador de empregos, razão pela qual merece não só a proteção como o incentivo estatal, com isenções, doações e benefícios que os pequenos não desfrutam. Além de deterem os meios de produção, ainda são colocados numa categoria de inatingíveis, visto que a versão construída de que são os motores do desenvolvimento é amparada pelos governantes, inclusive aqueles que se dizem progressistas ou de esquerda.
A partir dessas considerações, se o líder político fomenta a ideia de que o grande capitalista deve ser protegido e sugere a divisão de classes pela capacidade de consumo, teremos uma distorção da realidade do que é o sistema em vigência. Alguém que se intitule de esquerda não deveria aceitar essa interpretação. O limite desse tipo de política são pactos temporais, que garantem avanços em relação a questões humanitárias, muitas vezes atreladas a ações de marketing, cada vez mais praticadas pelas grandes empresas, e melhoria na capacidade de consumo, que irá gerar uma sensação de bem-estar e mobilidade social. Pode parecer excelente, especialmente se compararmos com a experiência anterior, mas a duração desses ganhos sociais pode ficar limitada ao governo que os implementa.
Ser de esquerda realmente não é tão simples quanto parece para alguns. Não será a camiseta vermelha ou gritos de guerra que irão definir qual o real campo político de atuação. Diante de políticas de estado capazes apenas de produzir um cenário mais colorido e menos perverso, não se pode confundir isso como referencial de esquerda e, assim, os questionamentos deixarem de existir. Afinal, a raiz capitalista está mantida se os grandes continuam intactos e a luta será travada entre membros de uma mesma classe, que não são diferenciados adequadamente.
Mais grave ainda é quando o conceito de democracia é moldado para manutenção do controle pelas classes privilegiadas. Algumas ideias foram assimiladas como se fossem garantia de quebra das desigualdades. Um bom exemplo é o concurso público. Se a política de cotas nas universidades é tão combatida, note-se que, em relação a ocupação de cargos públicos efetivos é ainda insignificante, quando comparamos a divisão da sociedade brasileira e quem ocupa os espaços no Estado.
Por que é tão raro encontrar pessoas negras de origem pobre em cargos de procurador, auditor, promotor e outras funções de alta remuneração? Porque o processo de seleção privilegia quem tem as condições para transformar a aprovação nas carreiras de estado em meta de vida. Não são só horas de estudo que são necessárias para passar em uma peneira tão fina. Do nutricionista ao coach, o investimento é altíssimo e isso já deixa claro que o concurso no modelo atual é excludente, uma vez que mantém as desigualdades. Sendo os aprovados integrantes de segmentos com muita capacidade de consumo, trabalharão em torno dos valores que absorveram e do conceito deturpado de que estão mais próximos dos grandes capitalistas que do trabalhador.
Os equívocos de interpretação sobre o que é a construção de um governo de esquerda e democrático são muitos. Principalmente, porque tanto quem governa, como quem vota, na sua maioria, não apreende os conceitos (ou se sim, não os coloca em prática) que permitiriam estabelecer os campos de disputa e quem precisa ser combatido. O Estado Brasileiro é reprodutor dos interesses do capitalismo. Os rumos do país só mudarão quando começarmos a romper essa lógica.
Como já foi dito, não temos condições objetivas para o socialismo. Mas, a meta, a meu ver, é começar pela garantia de dignidade com todos os direitos individuais previstos. Assim, o consumo alardeado como objetivo da política governamental, será uma opção do trabalhador, mediante distribuição de renda e redução das cargas tributária e inflacionária sobre os itens essenciais.
As distorções apresentadas mostram que não são bandeiras que qualificam alguém como de esquerda. Os conceitos é que dão sustentação à orientação política. Só assim, as pessoas poderão agir politicamente cientes do lado em que estão militando. De outra forma, é como a velha história do shampoo Denorex, que parece remédio mais não é. No nosso caso, teríamos o Esquerdex, que parece de esquerda, pensa que é de esquerda, mas não é.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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