As cidades bolsonaristas têm regras e sistemas institucionais próprios de proteção aos seus delinquentes furiosos e poderosos. É como funcionava a Chicago dos gângsteres e como funcionam as regiões dominadas por milicianos. Como não poderia deixar de ser, a escravidão é parte desse contexto e o efeito é devastador contra as próprias comunidades
Moisés Mendes*, em seu blog
O bolsonarismo raiz é um fenômeno paroquial, que se disseminou virtualmente pela ação de tios e tias do zap de pequenas e médias cidades e virou modo de vida.
A vidinha da província, mobilizada pelas milícias digitais de Bolsonaro, multiplica extremismos, mentiras e ódios disfarçados de posições e atitudes pretensamente moralistas e religiosas.
O efeito é devastador contra as próprias comunidades. Um exemplo recente. Bento Gonçalves, a cidade dos vinhos na Serra gaúcha, era até agora apenas um lugar ultraconservador com índole bolsonarista. É há uma semana uma cidade que tem bolsonaristas e escravistas.
Três empresas do centro da região da uva, Aurora, Salton e Garibaldi, foram flagradas como contratantes de trabalho escravo de mais de 200 nordestinos, num sistema que o eufemismo chama hoje de análogo à escravidão.
Não são bodegas. São grandes grupos com fama fora do país, são grifes internacionais. Desfrutavam de um serviço sujo terceirizado gerido por gatos de fora da região.
Não há surpresa. O escravismo é coerente com as discriminações e os ódios propagados pelo bolsonarismo. Também o escravizado do século 21 é visto como um ser inferior, e mais ainda se for baiano.
Mas o bolsonarismo não poupa nem os seres superiores com os quais discorda. Em maio do ano passado, líderes de Bento Gonçalves mandaram dizer ao ministro Luiz Fux que não aparecesse por lá para uma palestra.
Fux deveria ir a Bento em junho a convite da Câmara da Indústria, Comércio e Serviços (CIC). A reação de grandes empresários bolsonaristas acionou ataques ao ministro nas redes sociais.
A CIC tornou público que não seria seguro manter a palestra em sua sede, considerada desprotegida, e transferiu o evento para o prédio da OAB.
A mais poderosa entidade empresarial da cidade avisava ao presidente do Supremo que sua segurança estava em risco. Fux desistiu da viagem. O tema da conferência era Risco Brasil e segurança jurídica.
Foi desfeito o roteiro de um faroeste com desfecho previsível. Fux seria cercado, se conseguisse passar pelo pórtico da cidade, representado por um gigantesco barril de vinho. E assim o caso foi encerrado.
Ninguém mais fala do episódio, como ninguém quer saber o que resultou na polícia, no Ministério Público ou na Justiça do cerco de manés ao ministro Luis Roberto Barroso na famosa praia de Porto Belo, em Santa Catarina.
Barroso jantava com a família e amigos num restaurante, no dia 3 de novembro, quando uma turba cercou o prédio.
O grupo do ministro teve de abandonar o restaurante. Barroso se refugiou na casa onde estavam hospedados.
O local também foi cercado. Os agressores gritavam e ameaçavam. Às 4h da madrugada do dia 4, sob escolta policial, a família abandonou a casa e a região da enseada de Porto Belo.
O fim de semana na praia havia sido interrompido por bandidos em fúria. Não se sabe até hoje das medidas legais e formais contra quem ameaçou Fux em Bento Gonçalves e Barroso em Porto Belo, até porque as pautas foram abandonadas pela grande imprensa.
E a vida segue. As paróquias têm regras e sistemas institucionais próprios de proteção aos seus delinquentes furiosos e poderosos.
É como funcionava a Chicago dos gângsteres e como funcionam as regiões dominadas por milicianos. Fux não entrou em Bento e Barroso foi corrido de Porto Belo.
Um era o presidente do Supremo e o outro será o próximo a ocupar o comando da mais alta Corte do país, hoje com a ministra Rosa Weber.
Os personagens que afrontaram os ministros são de apenas dois dos muitos redutos interioranos tomados pelo bolsonarismo.
O Sul tem centenas dessas trincheiras, muitas transformadas em fortalezas impenetráveis durante a ocupação de quartéis por manés e patriotas.
Cidades gaúchas que agridem ‘esquerdopatas’ (e fazem listas de boicote a empresas e profissionais) têm as suas Gangues do Relho.
Pequenas e médias cidades foram dominadas por forças que não existiram nem na ditadura. Os agressores mais destemidos subiram na hierarquia do fascismo e se transformaram em terroristas, no 8 de janeiro em Brasília.
O bolsonarismo exacerba a índole de suas lideranças e das bases de manés e patriotas e acaba expondo Bento, Porto Belo, Itajaí, Sorocaba como bolsões incontroláveis.
Ao extremismo, soma-se agora, no caso de Bento, a chaga do escravismo. O bolsonarismo que avançou em todas as áreas, em quatro anos, deixa sequelas destruidoras.
No segundo turno do ano passado, Bolsonaro teve 75,8% dos votos em Bento e 74,29% em Porto Belo.
Em Itajaí, Santa Catarina, onde se formou um dos maiores acampamentos pelo golpe, Bolsonaro venceu com 72,96%.
Mais do que hegemonia, a extrema direita pretende ou pretendia ter controles absolutos. Grupos organizados, com forte base popular, se apropriaram das comunidades.
A escravidão é parte desse contexto. A elite branca, tomada pelo sentimento de superioridade política, econômica e moral, impõe as leis locais do bolsonarismo.
Vinha dando certo, mas não dá mais. A Bento Gonçalves dos vinhos e espumantes não sai das manchetes. Quantos escravistas estavam nos grupos de tios do zap que enxotaram Luiz Fux?
O poder de destruição da extrema direita implode as cidades, suas marcas e suas almas.
*Moisés Mendes é jornalista em Porto Alegre. Foi colunista e editor especial de Zero Hora. Escreve também para os jornais Extra Classe, Jornalistas pela Democracia e Brasil 247. É autor do livro de crônicas ‘Todos querem ser Mujica’ (Editora Diadorim)
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