Categories: Política

Desumanizando e reumanizando

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

É preciso recuperar as verdadeiras proporções entre o conflito e a união, recorrendo à análise minuciosa de milhares de pequenos fatos e de indícios vagos acidentalmente preservados no que restou do passado, a interpretá-los com a ajuda da etnologia comparada e, depois de tanto ouvir falar sobre o que dividia os seres humanos, reconstruir, pedra sobre pedra, as instituições que os uniam”. Apoio Mútuo, Kropotkin.

Alguns livros, não muitos, contam uma história da modernidade bem diversa da que estamos habituados a ler.
Discurso da servidão voluntária, Diálogos no inferno entre Machiavel e Montesquieu, Planolândia, Auxilio Mútuo, 1984, cinco livros que podem ilustrar o declínio da humanidade ao nível dos objetos.

A jornada do humano-terra rumo à sua desumanização foi relativamente rápida, se considerarmos que a existência do humano-terra está ligada ao grandioso e longevo período da bioera enquanto a sua desumanização ligada ao recente antropoceno.

Servir ao poder, o poder se torna soberano, o pensamento linear, o possível fim da evolução, o poder democrático e totalitário. As etapas que as leituras sugerem.

São migalhas de pão a guiar a saída com uma percepção diferente da que formou a visão de mundo ocidental moderna.

Como Baudrillard, sou também um dissidente da verdade, criando uma teoria irônica cujo objetivo é levantar hipóteses, para isso utilizo fragmentos, jamais textos unificados pela lógica rigorosa da dominação.

A soberania humana e a destruição da vida como um custo para dominar a técnica também exige sua própria submissão.
A liberdade deve ser a possibilidade de escolher um outro mundo diferente do mundo colonial e essas migalhas podem apontar para essa diversidade que tanto se comenta, mas cuja compreensão parece tão improvável.

Mas tais migalhas de nada servem se na jornada não cuidássemos de desaprender a ordem colonial instada no pensamento e na racionalidade. É preciso cessar as narrativas. Como é preciso reivindicar a dúvida como elemento de superação das verdades universais.

Esses dois exercícios, silenciar as narrativas originárias do pensamento e duvidar das verdades universais são fundamentais para que outra visão de mundo possa ser percebida.

E como seriam silenciadas as narrativas?

Ouvindo as vozes sem julgamento na diferença. Esse é um exercício importante de encontro com o esforço de reconhecer que a identidade é excludente e privatista e que para encontrar a diferença é preciso ouvir atentamente as vozes diferentes. Não é preciso ser sabido pra entender que as diferenças estão nos orfanatos, nos asilos, nos manicômios, nas prisões. Visitar essas instituições com persistência e curiosidade é parte da dissolução das narrativas. Ouvir sem julgar os aprisionados, os descartados, os excluídos, os residentes sem fim dos exílios são necessários até que a presença deles na memória seja indestrutível e suas vozes substituam as narrativas que ainda persistirem na cacofonia da racionalidade herdada do mundo colonial.

As verdades inquestionáveis representam outros desafios igualmente internalizados pelo neófito. Uma das formas desse questionamento é a irreverência, o ato de não se levar a sério é capaz de se colocar diante das verdades supremas com ironia e desdém e diante de sua estatura imensa ridicularizar os arautos dessas verdades.

Cada um deles será testado, Newton, Darwin, Marx, Freud, a suprema tetralogia demiúrgica que edificou o império cognitivo deverá ser ironizada com uma única questão: como você sabe que é assim como diz?

A gravidade, a evolução, a luta de classes, a psicologia que juntas compõem todo o universo colonizador conduzindo para cada parte do mundo os determinismos aqui contidos em que cada ser precisa acreditar nessa forma peculiar de transubstanciação, de fé apriorística, a mesma mística que transforma pão em carne de cristo e vinho em seu sangue opera no cerne das verdades universais inquestionáveis. É preciso crer que assim é, pois todas as tentativas de experimentar a origem termina do criador demiúrgico, nos argumentos físicos, evolutivos, classistas, psicológicos, determinísticos. Não se pode testar as origens, perdidas no tempo pretérito, escondidas da visão dos questionadores.

Leia aqui todos os textos de Eduardo Bonzatto

Do mesmo jeito, são heréticos aqueles que duvidam, a priori condenados por proferirem besteiras contra a fé científica.

Mas heréticos são todos aqueles que escolhem, portanto não pode haver mais malefício para a dureza científica do que a liberdade de escolher outros caminhos diferentes dos que são indicados com tanto fervor para nós. Isso quebra de imediato a relação heteronômica e podemos superar as autoridades contidas em todas as regras, todas as verdades, todo o poder.

O afastamento da norma é tão libertador que um peso enorme sai de nossas costas, promovendo alivio imediato. É esse ser leve que deve agora se apropriar dos livros heréticos para ouvir outras histórias e depois de também questionar as verdades ali contidas, passar a criar as suas próprias.

Quando La Boetie escreveu seu libelo inaugural da modernidade acerca do voluntarismo com que seus cidadãos ansiavam em servir aos poderosos emergentes ninguém lhe opôs palavra, tão envergonhados deveriam se sentir.

Machiavel aproveitou para instruir os recém empossados senhores do poder solitário para garantir o sucesso da empreitada. O fez com tamanho ímpeto que acabamos por conhecer seu livro O Príncipe e não o que o originou. Assim opera a hegemonia: oculta aquilo que denuncia e conserva o que instrui. Então o que não era razoável se torna razoável e se oculta seu começo, se não quisermos que logo tenha fim.

A perspectiva deixa de ser o homem comum e passa a ser o príncipe, ou seja, se afasta dos hereges (das escolhas) e exalta o poder. Logo o que era voluntário passou a ser obrigatório. Se a servidão voluntária é coletiva, a obrigatória é individual e precisa ser sincera em sua obediência vulcânica.

Então, se ainda haveria retorno para a servidão voluntária ainda fruto da escolha, para a obrigatória se fechava a porta atrás de si e qualquer resistência poderia ser punida justamente.

O Príncipe foi ensinado pra muitos enquanto o discurso da servidão voluntária foi desaparecido como injurioso, pernicioso e vulgar. Afinal, onde já se viu, o poder e a dominação existem desde sempre, desde a caverna, no Egito e na Mesopotâmia, na Grécia, em Roma, na Idade Média, sempre houveram aqueles que mandam e os muitos que obedecem ou se rebelam. Manda quem pode e obedece quem tem juízo, eis a norma do mundo e o motor da história.

A obra ‘Discurso para servidão voluntária’, de Étienne de La Boétie, é um escrito no século XVI, no qual o autor afirma que é possível resistir aos discursos autoritários e à opressão sem violência. Na obra, La Boétie enfatiza que a tirania e o autoritarismo se destroem sozinhos quando as pessoas possuem liberdade de escolhas, dando-se conta da própria escravidão. Ainda era possível evitar a escravidão.

A força institucional da Igreja, do Estado, da soberania humana soterrou a escolha e impôs pelos próximos séculos uma visão de mundo aterradoramente positiva, ilusoriamente evolutiva e misteriosamente aceitável.

Quando Maurice Joly publicou seu libelo inspirado na França de Napoleão III, a organização das forças do poder já tinha se consolidado. A política, a educação, a ciência, os jornais, os bancos, cada parte aparecia no seu libelo como uma sentença de acomodação do domínio das elites. Maquiavel e Montesquieu eram os protagonistas da discussão e denunciavam o mundo da norma como uma condenação.

Aqui, os princípios revolucionários se consolidavam como um elenco de diretrizes da burguesia para reduzir os homens há um redil onde a liberdade, a igualdade e a fraternidade não passariam de um slogan ideológico fajuto e cínico.

E uma segunda vez o livro em questão foi desaparecido e reconfigurado num livro maldito chamado Os protocolos dos sábios do Sião, pelas hábeis mãos dos agentes do Czar russo para incriminar não os burgueses da Europa pós revolucionária, mas os judeus como aqueles que pretendiam dominar o mundo. Anos depois, os nazistas tomaram esse livro e impulsionaram a solução final contra o povo judeu na Europa.

O primeiro desaparecimento da servidão voluntária aconteceu no raiar da modernidade sob um estado absoluto. O segundo desaparecimento, do livro de Joly se deu sob a chancela do estado classista burguês. O terceiro livro saberemos agora seu destino.

A seguinte frase consta da obra Apoio Mútuo: um fator de evolução de Piotr Kropotkin:

Não é amor, e nem mesmo simpatia (compreendida em seu sentido literal), o que leva um rebanho de ruminantes ou de cavalos a fazer um círculo a fim de resistir ao ataque dos lobos; ou lobos a formar uma alcateia para caçar; ou gatinhos ou cordeiros a brincar; ou os filhotes de uma dezena de espécies de aves a passarem os dias juntos no outono. Também não é amor, nem simpatia pessoal, que leva muitos milhares de gamos, espalhados por um território do tamanho da França, a formar dezenas de rebanhos distintos, todos marchando em direção a um determinado ponto para cruzar um rio. É um sentimento infinitamente mais amplo que o amor ou a simpatia pessoal – é um instinto que vem se desenvolvendo lentamente entre animais e entre seres humanos no decorrer de uma evolução extremamente longa e que ensinou a força que podem adquirir com a prática da ajuda e do apoio mútuos, bem como os prazeres que lhes são possibilitados pela vida social. […] não é no amor, e nem mesmo na simpatia, que a sociedade se baseia. É na percepção – mesmo que apenas no estágio do instinto – da solidariedade humana. É o reconhecimento inconsciente da força que cada homem obtém da prática da ajuda mútua; da íntima dependência que a felicidade de cada um tem da felicidade de todos; e do senso de justiça ou de equidade que leva o indivíduo a considerar os direitos de todos os outros indivíduos iguais aos seus. É sobre esse alicerce amplo e necessário que se desenvolvem sentimentos morais mais elevados”.

Mas a sociedade denunciada por Joly em seu libelo não poderia aceitar que princípios de solidariedade fossem fatores de evolução da vida e fizeram desaparecer a obra de Kropotkin enaltecendo a de Darwin, muito mais adequada à soberania das classes liberais. A frase de Spencer, “sobrevivência dos mais aptos” de 1852 consolidava como científico os princípios de Darwin e, principalmente o darwinismo social com sua carga de eugenia, racismo e superioridade de uns sobre outros baseados na biologia. A coincidência com os desejados princípios sociais vigentes fez o resto e até hoje aceitamos essa diretriz como argumento para a desigualdade crescente e inquieta que nos acolhe como natural.

O último livro é 1984, de George Orwell o escreveu em 1949, em que as diretrizes de um estado consolidado marcaram os anos seguintes até o presente, em que a democracia é parte de um revisionismo histórico e sua aparente menção resolve todos os problemas, apoiada por uma nomenclatura de novilíngua, também chamada de novafala ou politicamente correto, em que o controle é exercido pelo consumismo e endividamento interminável, pelo pensamento dicotômico e linear, pelos empoderamentos e pelo lugar de fala que atribui a certos grupos a primazia dos enunciados e dos cancelamentos.

A admiração ao líder é garantida por um sentimento de justiça e moralidades inquestionáveis e condena todos os que não pactuam de sua superioridade moral ao vilipêndio.

Muitas vezes o livro só é lembrado como uma distopia dos sistemas totalitários, mas nos anos que lhe seguiram, as formas de absolutismo ideológico foram assumindo um lugar de verdade inquestionável e apenas mencionar a defesa da democracia garantiram sistemas de controle da verdade e de opressão justificadas pela própria natureza da democracia, literalmente o poder nas mãos de todos.

A obra de Orwell investia no ordenamento totalitário que ainda se nutria de um líder. Os anos que se seguiram mostraram que o poder deveria ser distribuído democraticamente, pois o povo empoderado é muito mais adequado a funcionar como pequenos tiranos do que as velhas e decadentes formas de opressão e vigilância estatal. O líder é só mais um adereço, uma justificativa para as alegorias violentas desse tempo.

Programas como o Big Brothers que se alastraram pelo mundo todo são um exercício plausível do funcionamento da nova ordem democrática, em que cada indivíduo está pronto para denunciar, julgar, condenar seu próximo em nome de não mais que apenas o uso do poder que tem disponível.

A jornada do humano-terra que havia marcado presença até o raiar da modernidade, quando foi substituído e colonizado pela soberania humana, cumpriu uma trajetória de desumanização crescente, de objetificação no jogo produtivo e educacional até que a autonomia possa ser recuperada, ainda que individualmente, para que escolhas mais libertárias sejam possíveis.

Planolândia é um mundo bidimensional no qual os indivíduos são figuras geométricas, onde os níveis e status sociais dependem da quantidade de lados que se têm, assim como a congruência e equivalência de seus lados. O Quadrado A, personagem central deste romance, vive uma vida pacata, desfrutando de uma posição mediana na sociedade, onde triângulos e linhas são vistos como seres inferiores, e círculos e polígonos complexos usufruem de um status elitista, que os colocam no topo das decisões políticas e sacerdotais. Tudo muda, porém, quando um certo visitante de outro mundo surge do nada para pregar o evangelho das três dimensões para o nosso pacato Quadrado.

Dizem que Deus não destrói a criação porque existem seis pessoas que fazem ainda valer a pena manter. Imagino que cada uma delas seja autônoma em meio à heteronomia desumana do social.

Este é August Landmesser, sujeito que ficou famoso por ser o único em meio a uma multidão que preferiu cruzar os braços em vez de realizar a icônica saudação nazista, arriscando, com isso, a própria pele. Um dos seis.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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