São quatro os poderes para a tensão: o poder executivo, o legislativo, o judiciário e o midiático. Há pouco a fazer quando a normalidade democrática corre nos trilhos seguros das disposições transitórias
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
A democracia, mais que um conceito é uma prática. É preciso que algumas condições sejam oferecidas para que um conjunto de indivíduos sintam sua manifesta organicidade.
É uma experiência social relativamente recente a vida democrática. E o que mais sobressai dessa experiência é o envolvimento das pessoas nos processos históricos de sua entronização.
Tomando o caso brasileiro, se considerarmos o envolvimento um dado massivo, ou seja, fora dos engajamentos de grupos que marcaram os últimos anos sob a égide da constituição cidadã de 1988, apenas nos últimos sete anos a mobilização social ampla encontrou na árdua convocação das lutas eleitorais um campo político desse envolvimento.
Os governos gentis no poder a partir de 2002 não foram testados no campo das disputas massivas em cada etapa de seu avanço. O impeachment de Dilma Rousseff é prova da absoluta desmobilização a que estou me referindo.
De fato, apenas com a proximidade da eleição de Jair Bolsonaro as mobilizações se fizeram sentir. Os contornos mais radicais exigiram envolvimentos grandiosos e a polarização é uma das melhores formas para exercitar as potencializações democráticas. O que era morno até então se torna combustível e clama por vozes mais dissonantes.
Os indivíduos saem de seus lugares de conforto para o de confronto, ávidos por se engajarem nas lutas políticas. E não deixa de ser incrível como a formação ideológica é imediata a partir do momento decisivo da luta. Pessoas comuns se engrandecem diante de formadores de opinião e de legisladores de botequim. Pautados por um cálculo válido e misterioso, escolhem a bandeira como um avatar e saem às ruas em estados de defesa e de ataque continuados. A mobilização é emergente e está sempre carregada de uma energia poderosa, colhendo cada vez mais partícipes da jornada política democrática. E apenas na democracia isso é possível. Nos estados de exceção, os grupos cumprem essa função de modo pífio, ordenado e localizado, incapaz de contaminar os demais.
De modo que as jornadas democráticas, usualmente, são acompanhadas de letargias mentais, tornando a aparência democrática coisa de tolo.
Nesse sentido, a arquitetura democrática acompanha os momentos letárgicos sem entusiasmo. Essa estrutura foi imaginada como um jogo de tensões que, sem elas, fortificam apenas os esboços de sua elevada curvatura.
São quatro os poderes para a tensão: o poder executivo, o legislativo, o judiciário e o midiático. Há pouco a fazer quando a normalidade democrática corre nos trilhos seguros das disposições transitórias.
Nesses períodos a gentileza é a marca das relações entre eles. Como se ninguém quisesse tensionar além do necessário. O governo de plantão submete ao legislativo as demandas sempre aceitáveis de tal sorte que o referendo, seja qual for, preserve a calma parlamentar.
As estruturas legais cumprem seus rituais a contento e o judiciário decreta suas prédicas sem distúrbios.
Os indivíduos pouco ouvem falar desses poderes em seu cotidiano amornado pela continuidade conservadora. Vivem suas vidas longe dos corredores parcimoniosos por onde circulam os agentes do poder. Eventualmente um escândalo chama atenção para que a figura do político se perpetue como um prosaico agente de corrupção que logo desaparece, permanecendo apenas como um lembrete de que a política não vale a pena ser pensada.
A grande maioria das pessoas não sabem como funcionam essas estruturas e nem se interessam, desde que suas vidas possam passar ao largo das diatribes siderais das esferas do poder vigente.
Todavia, esse estado de letargia comunal pode ser revolvido de modo a que os indivíduos se mobilizem para a grande luta democrática que está ali, disponível nas estruturas criadas para esses momentos históricos. É quando tudo deve fazer sentido, no fervor radiante das lutas.
Karl Marx foi um dos principais teóricos desses momentos ao analisar o ímpeto revolucionário na França de 1789. Foi percebendo como uma força primária tinha combustível para ir até um certo ponto e depois refluía, mas era superada por outro grupo, que levava o conflito a níveis ainda mais densos e também esses seriam superados por outros, até que, naquele caso específico, forças conservadoras surgiram para reduzir o ímpeto e anular no momento exato o furor, antes que o estágio desejado fosse historicamente superado também por forças mais primitivas, indesejadas para o motor virtuoso e positivo da história.
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Mas não é necessário que o movimento emergente da política seja revolucionário para percebermos como as instancias democráticas funcionam nos momentos mais intensos do engajamento político massivo.
A polarização como estamos vivenciando agora é um desses momentos raros na história recente da democracia. É quando todos os discursos mornos dos porta vozes da democracia serão testados para o espetáculo de uma verdadeira conjunção de respostas legais ou ilegais para sua manutenção.
É quando as questões mais insidiosas da experiência democrática vêm à tona com sua face tirânica em nome justamente da democracia sempre reivindicada, como uma abstração que requisita para si o ordenamento social necessário e suficiente de um discurso finalista e igualmente positivo.
A escatologia contida no termo democracia reside justamente em que não é possível superá-la, não havendo nada além dela própria. E como não há nada além dela, nela precisamos realizar todas as possibilidades, inclusive amortecendo as tensões que poderiam nos convencer de que ela não é capaz de suprir suas promessas de estabilidade indefinidamente.
Disse um dia Winston Churchill que “a democracia é o pior dos regimes, à exceção de todos os outros”. A frase já foi tantas vezes citada que perdeu a originalidade, mas, ainda assim, continua a ser das melhores para usar na hora de defender as virtudes (ainda que refletindo sobre a falta delas) dos sistemas políticos ocidentais.
Parece haver essa espécie de consenso de que não existe nada além da democracia e isso pode ser perturbador, pois ao ser contido nela todas as possibilidades, resta um reordenamento no interior de seus dispositivos democráticos para suprir suas próprias deficiências.
Se a independência dos poderes regula os tempos de paz interna, com a polarização intensa os conchavos precisam garantir que um grupo prevaleça sobre o outro. É o momento de inflexão dos ordenamentos institucionais para um locus totalitário. O consenso não pode ser perdido, nem mesmo em nome dos discursos que sustentam a voz democrática.
Então os arranjos procuram alinhar com a força subterrânea os quatro poderes numa linha de pura dependência. Ninguém pode sair fora desse alinhamento.
Vivemos agora exatamente esse momento. O poder executivo precisa do suporte do legislativo, principalmente do senado e também da câmara. Aí se decide o que pode ou não ser votado, o que deve ser legislado. Então o presidente do Senado precisa responder ao presidente da nação com uma voz obediente, acompanhado do presidente da câmara dos deputados. Esse alinhamento dos poderes fundamentais não pode ficar a descoberto se o judiciário não conter eventuais ataques ao grupo hegemônico. O presidente do Supremo é o alinhamento fundamental da ordem inquestionável. Resta o quarto poder, a fonte onde o controle das narrativas ganha legitimidade. No cenário atual, a Rede Globo cumpre exemplarmente essa função, reduzindo quase todas as alternativas externas a ela a um balbucio.
Quando esse alinhamento se realiza completamente, já não há mais prática democrática de direito, e só por ficção se mantem o ordenamento político. Os indivíduos e seus clamores não silenciam, pois a dicotomia do grupo massivo é parte do jogo ficcional da democracia teórica e no aceite da hegemonia constitucional vigente.
Apenas num outro momento histórico essa situação se realiza: nas ditaduras, pois o executivo silencia por força das armas, o legislativo, o judiciário e a mídia, manifestando um pensamento único que precisa se tornar pedagógico.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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