A taxa de juros e o BC independente: mitos e a agenda oculta
O discurso aparentemente técnico, frio e imparcial disfarça a defesa dos privilégios dos donos do dinheiro no debate sobre a política monetária. A independência formal é apenas instrumento para constranger eventuais governos progressistas
A gestão da taxa Selic pelo Banco Central do Brasil ganhou a atenção da nação por causa das queixas dirigidas pelo presidente Lula à atuação do presidente daquela autarquia, Roberto Campos Neto, e em reação ao tom adotado pelo Comitê de Política Monetária (Copom), composto pela diretoria do Bacen, em seu comunicado ao público liberado após o término da sua última reunião, em 1° de fevereiro. Lula se mostra especialmente incomodado com a manutenção da taxa de juros em 13,75% a.a., nível que o presidente – com toda razão – considera excessivamente elevado para as circunstâncias.
Imediatamente, a grande imprensa reagiu, colocando-se contrária à postulação do presidente Lula e em defesa da independência do Bacen e da competência técnica de sua diretoria.
A verdade é que esse é um debate interditado no Brasil, dominado por mitos e uma agenda oculta. Vamos a eles:
Mito 1 – Baixar os juros “artificialmente” faria explodir a taxa de inflação
Não há essa correlação automática.
Esse mito tantas vezes repetido parte da noção de que há uma taxa natural de juros, aquela que seria neutra em relação à inflação. Portanto, afastar-se da taxa natural seria um artificialismo de efeitos danosos.
Remonta aos tempos da economia clássica, em que se buscava equiparar a ciência econômica às ciências da natureza, pesquisando as leis que regeriam as relações econômicas. Pretendiam postular leis e expressões matemáticas que seriam universais e inalteráveis, como as leis da física, por exemplo.
O fato é que não há qualquer evidência empírica que estabeleça uma clara correlação entre uma dada taxa de juros e um nível de preços determinado. Pelo contrário, há casos de convivência por períodos relativamente longos de baixas taxas de juros e altos níveis de inflação, como o recente período da pandemia de Covid-19 demonstrou, especialmente nos países desenvolvidos, que há mais de uma década se veem a braços com taxas de crescimento muito baixas, recorrendo a políticas monetárias frouxas e até a taxas de juros reais negativas (juros menores que a expectativa de inflação) como tentativa de reanimar a economia, enquanto amargam altos índices de inflação.
Não há leis e regras universais e imutáveis em relações sociais. Cada nação tem sua história, suas questões sociais e políticas e suas peculiaridades econômicas. Cada problema, em cada momento histórico, exige uma abordagem particular. Logo, não há equilíbrios “naturais” que se possam expressar em equações matemáticas aplicáveis a todas as situações e períodos históricos, assim como não há apenas uma única forma de organização possível da sociedade, nem mesmo no contexto de um mesmo modo de produção.
Mito 2 – Aumentar os juros combate a inflação
Nem sempre.
A inflação é um fenômeno complexo e, portanto, de múltiplas causas. A alta de juros pode ser eficiente para conter a chamada inflação de demanda, onde os preços sobem por um aquecimento da economia, visto que aumentos de oferta necessitam de um intervalo de tempo para que investimentos sejam realizados e maturados. Nesse caso, a alta de juros encarece o crédito, desincentivando o consumo e buscando reduzir a pressão de demanda.
A inflação brasileira recente não é desse tipo. Basta ver os altos índices de desemprego, desalento e informalidade no mercado de trabalho; o congelamento real do salário-mínimo – que atinge boa parte dos trabalhadores e sobretudo dos aposentados – e as quedas da remuneração média do trabalho e até da massa salarial medidas pelo IBGE, até pelo menos o primeiro semestre de 2022. Não há qualquer pressão de demanda numa economia com renda em queda ou estagnada.
A alta de preços recente foi tipicamente uma inflação de custos, causada principalmente por choques de preços de energia e alimentos, provocados por uma combinação infeliz de dolarização e paridade internacional dos preços dos combustíveis; desativação e liquidação de estoques reguladores de alimentos; desvalorização do câmbio e fenômenos climáticos. Uma inflação de custos não é afetada por altas de juros e costuma desvanecer após absorvidos os efeitos desses choques, mas não tão rapidamente. A economista Júlia Braga, da UFF, demonstrou em suas redes sociais que a inflação de alimentos se situa na casa dos 11% a.a., e vem baixando lentamente. “A desinflação é um processo demorado”, afirma.
Desinflação é um processo demorado.
A de alimentos ficou acima da média desde o início da pandemia.
Alta de 0,59% em jan.; 11% em 12 meses.
No domicílio 12,2% (!). pic.twitter.com/g1f8tlky0s— Julia Braga (@juliambraga) February 9, 2023
Ademais, preços de energia são transversais a toda a economia. Afetam, ainda que de forma desigual, todos os setores econômicos, o que potencializa os efeitos de eventuais choques de preços de combustíveis, que se espalham rapidamente por toda a economia. E ainda o efeito da inflação passada, que afeta as expectativas dos agentes econômicos. Estes relutam em estabilizar seus preços, quando não os reajustam preventivamente, receando que a alta de preços perdure.
Adicionalmente, o próprio regime de metas de inflação – totem sagrado para o mercado financeiro – está sob reavaliação nos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). O economista César Locatelli publicou em Carta Capital seus comentários sobre um instigante estudo publicado por aquele órgão, que demonstra a inefetividade do regime de metas de inflação sob algumas circunstâncias, quer para controlar os preços, quer para promover o crescimento econômico.
Choques de preços causados por instabilidades nos mercados de commodities e câmbio (muito comuns nos países dependentes) não são tratados de forma coerente pelo regime, que usa quase que exclusivamente um instrumento – a taxa de juros – para dominar processos inflacionários de causas diferentes. As eventuais vantagens deum Regime de Metas de Inflação “parecem não ser argumentos fortes o suficiente para restringir a busca por políticas monetárias mais eficientes e de menor custo para a sociedade como um todo”, pondera Locatelli. É como ministrar antibióticos a um paciente que não sofre de um processo infeccioso. É ineficaz e pode ser danoso, em vez de curar.
Mito 3 – O Bacen independente pode tomar decisões técnicas, sem interferências políticas
Não há neutralidade técnica em economia, como de resto em qualquer relação social. Muito menos ainda em sociedades altamente desiguais como a brasileira.
Toda decisão de política econômica segue uma diretriz política. Portanto, são as decisões políticas que determinam as direções a serem adotadas pelas políticas econômicas, e não o contrário. A simples priorização do controle da inflação em detrimento dos outros dois mandatos do Bacen – a busca do pleno emprego e da estabilidade financeira – já reflete a adoção da agenda de maior interesse do mercado financeiro.
Ao colocar o controle da inflação como objetivo único, e ao utilizar um instrumental inadequado para conter uma inflação de custos, o Bacen descuida da busca do pleno emprego, visto que altos patamares de juros prejudicam o crescimento, reduzindo o nível de emprego, sem conseguir baixar de forma consistente o nível de preços. A solução que preconizam é dobrar a aposta: mais juros, persistência em alto patamar. Os preços atingidos por choques de custos se ajustariam por si sós, ainda que lentamente, logo que cessados os efeitos iniciais. A um custo social e financeiro consideravelmente menor.
A taxa de juros brasileira é altíssima, pelo menos desde o Plano Real, quando o câmbio valorizado foi fundamental para ancorar a hiperinflação. Esse instrumental de quase trinta anos de existência, criado para sanear uma situação extrema, não mais se justifica e necessita de revisão pelo Bacen, que não o faz por ser, de há muito, capturado pelo mercado financeiro, que claramente se beneficia dessa política de juros altos. A discussão sobre a adoção de um novo paradigma para a taxa de juros estrutural necessária e suficiente para manter a inflação em um nível aceitável, em torno de 4% a.a., certamente forçaria uma queda considerável nos patamares de juros atualmente praticados.
A pesquisa Focus, que o Banco Central promove periodicamente junto aos agentes do mercado financeiro, baliza as decisões do Copom. Grosso modo, é como perguntar aos detentores da dívida pública quanto desejam receber de juros pelos títulos que já compraram. O maná dos céus para o mercado financeiro.
Logo, cabe questionar de quem o Bacen é independente. A ideia é que seja livre de controle social por meio dos poderes eleitos, respondendo apenas e tão somente àqueles aquem o Banco Central tem por missão fiscalizar e controlar: os bancos e demais agentes financeiros.
A “porta giratória”, ou a facilidade com que executivos vão da direção da banca privada à diretoria do Bacen e fazem o caminho de volta, faz pensar se não confiamos a guarda do galinheiro às raposas.
Os detentores da riqueza financeira são eficazes em preservar seus interesses na repartição dos recursos públicos, e para tanto não hesitariam em fazer revogar a lei que criou mandatos fixos para a direção do Bacen, se os diretores independentes não cuidassem de preservar escrupulosamente seus privilégios. A postura declaradamente parcial do bolsonarista Roberto Campos Neto e o fato de ser detentor de contas em paraísos fiscais não os incomoda. Ele é um deles e defende seus interesses. A independência formal é apenas um instrumento para constranger eventuais governos progressistas. Para isso foi adotada e para esse fim serve nesse momento.
A taxa de juros real brasileira é de longe a mais alta do mundo, na casa dos 7,52% a.a.ex post (descontada a expectativa de mercado para a inflação nos próximos doze meses). É pelo menos o dobro da praticada em países de economia muito menor e menos sofisticada, e chega a ser quatro ou mais vezes maior que a praticada nos países desenvolvidos.
Não existe justificativa “técnica” para a manutenção dessa aberração, em um país que possui robustas reservas em moeda conversível, uma economia razoavelmente diversificada, um grande mercado interno e uma inflação que mal arranhou a casa dos dois dígitos nos últimos 30 anos, além de ostentar indicadores sociais vergonhosos para uma economia de renda média. Exceto pelo que a partir de agora abordaremos, a agenda oculta do que o economista André Roncaglia, da Unifesp, de forma muito assertiva chamou em sua coluna no jornal Folha de S. Paulo de sindicato do rentismo.
A agenda oculta
O respeitado economista André Lara Resende, um dos autores do Plano Real, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, exibido em 28/06/2021, além de abordar a questão das várias causas da inflação, faz um cálculo interessante: uma elevação de 4 pontos percentuais na taxa de juros que incide sobre uma dívida de 90% do PIB equivale a autorizar que o Banco Central, sem o menor controle social ou político, sem prestar contas a quem quer que seja, eleve os gastos públicos em 3,6% do PIB. Isso equivale a todo o auxílio emergencial concedido no ano de 2020, no auge da pandemia, que exigiu uma Emenda Constitucional, aprovada por três quintos em duas votações em cada Casa Legislativa. Não existe nenhuma razoabilidade nisso, segundo o entrevistado.
A agenda oculta consiste em disfarçar sob um discurso aparentemente técnico, frio e imparcial, a defesa dos privilégios dos donos do dinheiro na discussão sobre as políticas macroeconômicas e, no caso em análise, a política monetária. Diz um antigo dito popular que o maior sucesso do demônio é fazer acreditar que ele não existe. Como já afirmamos acima, não há racionalidade técnica que justifique a permanência de juros tão altos no Brasil.
O fato incontrastável é que essa política transfere renda aos detentores de riqueza financeira, em níveis que muito dificilmente um investimento produtivo proporcionaria, com a vantagem nada desprezível de fazê-lo com um risco insignificante. Esses atores – a elite econômica – têm um imenso poder sobre a política, o mercado de opinião e até sobre parte relevante da academia, a grande vantagem que lhes dá a riqueza. Ao menor sinal de contrariedade, acionam seus funcionários – remunerados ou apenas inocentes úteis – que se batem ferozmente em defesa de seus privilégios, sob o pretexto de buscar o bem comum.
Escondem ainda – e esse é o debate que deveríamos travar – que a política de juros altos, que espertamente defendem usando o argumento de risco fiscal, provoca exatamente o que afirmam evitar: agrava o quadro fiscal, pois aumenta a despesa com juros da dívida pública, que já consome um naco significativo do orçamento da União.
Essa é a grande agenda oculta. Discute-se o resultado fiscal primário – que exclui as despesas financeiras – concentrando ali o debate e todo o esforço de equilibrar as contas públicas. Na verdade, cuida-se apenas de uma parte menor do problema. Não se discute o resultado nominal das contas públicas, porque aí não se poderia ignorar que o mais relevante motivo para as dificuldades de equilibrar o orçamento é o montante de despesas com juros da dívida pública. Como um prestidigitador, o mercado financeiro tenta nos iludir, chamando a atenção para uma de suas mãos para que não enxerguemos o que faz com a outra.
O economista José Luís Oreiro, da UnB, argumenta em artigo recente, “O Presidente Lula tem razão: o desequilíbrio fiscal no Brasil é culpa do Banco Central” que “o desequilíbrio fiscal é o resultado da política de juros adotada pelo Banco Central do Brasil nos últimos anos”, na medida em que onera excessivamente o Tesouro Nacional com o pagamento de juros injustificáveis.
Não há razão alguma para que continuemos dando palco a esses economistas do mercado financeiro que posam de defensores da racionalidade da coisa pública e seus estridentes trombones na imprensa para seguirem mistificando, interditando o debate que realmente interessa à nação – que sofre com o desemprego, o alto endividamento familiar, a insegurança alimentar, disfarçando a defesa da mais deslavada expropriação de fundos públicos em privilégio dos ricos sob o manto hipócrita da preocupação com o sofrimento dos pobres com a inflação.
É preciso deixar claro para o povo brasileiro quem se apropria da maior fatia dos recursos públicos, sem nem mesmo entregar uma inflação que não os atinja tão duramente – a inflação de alimentos é praticamente o dobro da taxa de inflação – visto que a despesa com alimentação consome a maior parte do que os mais pobres ganham.
É um duplo estelionato: sobem os juros para supostamente evitar que a inflação machuque o povo. Apropriam-se de recursos sociais vultosos e propiciam exatamente o oposto do que prometem; entregam ao povo uma inflação que os atinge na boca do estômago. Trata-se de pura e simples espoliação, saqueio. E nem se abalam, a bordo de suas aeronaves e veículos blindados, com as centenas de milhares que moram nas ruas e seriam socorridos dignamente com uma pequena fração da riqueza social de que se apossam sem o menor espírito público.
*André Luiz Passos Santos é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia.
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