O acesso ao celular foi a perdição e também a salvação para uma menina de 12 anos que entrou em um automóvel de aplicativo acompanhada de um homem de 25 anos, na frente de sua escola. A história deve render discussões profundas sobre controle e acesso a smartphone entre adolescentes, mas não só isso. Afinal, estamos em um país de predadores sexuais
Matheus Pichonelli, TAB
O acesso ao celular foi a perdição e também a salvação para uma menina de 12 anos que entrou em um automóvel de aplicativo acompanhada de um homem de 25 anos, na frente de sua escola, na zona oeste do Rio de Janeiro, em 6 de março. Ela só voltou para casa oito dias depois.
Após trocar mensagens com o açougueiro Eduardo da Silva Noronha, ela foi levada a São Luís (MA) sem saber que lá permaneceria em cárcere privado em uma quitinete. Só conseguiu pedir ajuda ao descobrir a senha do wi-fi de uma loja vizinha.
Foi o que possivelmente a salvou de interpretar na vida real um roteiro parecido com o do filme “O Quarto de Jack”, de Lenny Abrahamson, pelo resto da vida.
A história pode (e deve) render discussões profundas sobre controle e acesso a smartphone entre adolescentes, mas não só.
Estamos, afinal, em um país que odeia mulheres e não faz questão de disfarçar. A ponto de um homem feito encontrar um comparsa em uma empresa de transporte por aplicativo e atravessar o país com alguém que não tinha ideia nem idade para saber o que estava fazendo. Ele agora está preso e vai responder por estupro de vulnerável. O motorista deve ser indiciado também.
No mesmo dia, a Polícia Federal resgatou uma adolescente de 15 anos cooptada para prostituição em uma área de garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami, em Roraima. A mãe estava à sua procura desde 12 de fevereiro.
As notícias dividem espaço com outras histórias emblemáticas sobre as engrenagens de um país de predadores sexuais. Um deles mostrou os dentes ao importunar sexualmente uma criança de nove anos, acompanhada da mãe, em um supermercado em Congonhas (MG).
O homem, de 59 anos, tinha uma série de passagens e acusações de abuso, mas num país que odeia as suas vítimas, ele se sentiu seguro o suficiente para encoxar uma criança à vista de todos. O crime foi flagrado pelas câmeras de segurança do supermercado.
Em Goiás, um pastor convicto de sua onipotência se transmutou no próprio Criador para tentar convencer uma mulher de 20 anos a fazer sexo com ele em troca da salvação. Caso contrário, o dito representante direto e encarnado da vontade divina a puniria matando o marido e a filha dela.
Ninguém acreditaria na vítima, que conheceu o pastor em um grupo de estudos bíblicos, se a conversa e as ameaças não estivessem registradas em seu smartphone.
Tudo isso aconteceu na mesma semana em que dois participantes do BBB 23, MC Guimê e Cara de Sapato, foram expulsos do programa após um inquérito ser aberto na Polícia do Rio para apurar se eles cometeram importunação sexual. Um passou a mão no corpo de uma convidada mexicana e o outro deu um beijo à força na mesma participante. As câmeras do programa registraram tudo.
Cada uma dessas histórias mostra o risco envolvido na intersecção das relações de poder entre homens e mulheres (adulto e criança; pastor e fiel; riqueza e pobreza) no Brasil.
A ponto de coaches de namoro norte-americanos venderem este país como um paraíso de “mulheres exóticas” em razão da “exótica justaposição entre ricos e pobres”. Em fevereiro, eles desembarcaram em São Paulo com um grupo de turistas para fazer da cidade um campo de experimento prático de um curso de pegação.
O alvo preferencial eram mulheres sem smartphones, que deveriam ser atraídas, por meio de aliciadores brasileiros, para baladas organizadas pelo grupo. A ausência do aparelho enunciaria uma marca social (a pobreza) e a diminuição do risco de serem expostos. Encontrar mulheres do tipo, segundo eles, é “complicado, requer ajuda”, mas era possível.
Não deu certo. Por meio do TikTok, uma jovem denunciou o golpe e levou outras mulheres a registrarem denúncias anônimas contra os predadores estrangeiros.
Os acusados responderam, em uma live, dizendo que quem gravou o vídeo falando era “feia e gorda” e que as denúncias eram criação de “feministas estúpidas”, “desocupadas” e incapazes de cursar faculdade.
No Telegram, o administrador de um grupo com alunos do curso disse que era melhor viajar para a Venezuela, onde “pegar mulher é fácil, uma vez que a moeda deles é desvalorizada”.
Lembra alguma coisa?
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Por incrível que pareça, nenhum dos algozes vestiu peruca para sabotar os espaços e perturbar a segurança das mulheres em banheiros públicos, como quer fazer crer um deputado imberbe em seu discurso que escancarou, além da transfobia, seu desinteresse em entender quem são os reais responsáveis pela violência sexual em seu país.
Nenhuma das vítimas teve a chance de impor sua vontade testando a firmeza dos interlocutores confusos entre tomar cerveja ou Campari. Fica difícil impor qualquer coisa quando se é ameaçada e/ou sequestrada.
Graças à tecnologia, os abusadores foram expostos e denunciados. Suas vítimas sobreviveram.
No Brasil, uma mulher morreu pelo fato de ser mulher a cada seis horas, em média, em 2022. Foram 1,4 mil casos de feminicídio no período.
Há quem ganhe dinheiro dizendo em grupos de redpills e incels que há um plano maligno de dominação feminina em curso. São os mesmos irradiadores do ódio que movimenta os algozes de meninas e mulheres do Rio ao Maranhão, passando por São Paulo, Goiás e Minas.
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