Apelar para fundamentos econômicos, em meio a ignorância generalizada em relação a economia, é como dizer: não questione, porque você não sabe nada sobre o assunto e é o melhor para você, mesmo que sua vida só piore, mas pior ainda é o terrível dragão da inflação
Anderson Pires*
O mundo da economia é hermético. Não interessa a quem ganha dinheiro com juros, dividendos, câmbio, spread e alavancagens que a população tenha conhecimento sobre estes e outros conceitos econômicos. Parte da manutenção dos ganhos do setor financeiro tem por base uma política do medo, alimentada pela ignorância sobre os números e o trabalho que quase toda imprensa presta em reproduzir a versão do mercado financeiro.
Tem muito tempo que a complexidade da economia mundial deixou de ser um campo de estudo das ciências humanas. Cada vez mais, o debate está pautado nos números que o mercado financeiro estabelece como metas, sobrepondo-se aos impactos sociais que implicam diretamente na qualidade de vida da população.
Alguns dos “economistas” mais respeitados no mundo são, na verdade, engenheiros. Isso porque a abordagem matemática passou a ser a condutora dos processos econômicos, sempre adotando extrapolações, previsões e simulações que devem apontar para qual cenário os ganhos do capital financeiro serão maiores.
Nessa lógica, até o capital produtivo perde importância e de alguma maneira fica refém do setor financeiro. Enquanto bancos e especuladores ganham bilhões com juros, a produção cai e, por conseguinte, não são criados empregos e a renda média fica estagnada ou em queda.
As desculpas do mercado são sempre baseadas em fundamentos econômicos. Receitas tratadas como mandamentos divinos, que precisam ser respeitados para não se perder o controle sobre a famigerada inflação. É verdade que preços ainda mais altos agravariam a situação do país. Mas, da maneira como as medidas são adotadas pelo BC não se tem nenhuma perspectiva de melhoria em relação ao emprego, renda, aumento PIB e crescimento das atividades produtivas.
No final das contas fica a dúvida: o que é pior, a inflação que o BC diz estar a controlar ou o remédio usado pelo mesmo banco? Existe alguma lógica em estabelecer medidas que contêm a inflação por inanição de todos os setores da economia e que deixa apenas o setor financeiro enchendo os bolsos com os juros extorsivos praticados?
Mas vamos a alguns números. A última reunião do Copom do Banco Central manteve a taxa Selic em 13,75%. É bom lembrar que até 17 de março de 2021 a taxa estava em 2,00%. Depois de um ano da pandemia, o BC resolveu promover um aumento desenfreado da taxa. Para isso, usou como justificativa a instabilidade econômica e a inflação em alta.
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Porém, a forma como o BC calcula a meta inflacionária é com base numa regra matemática, criada em 1999 por um engenheiro. Foi construída para atender ao mercado num momento completamente diferente do atual e que até o próprio criador, já disse que o modelo não cabe mais para realidade do Brasil e do mundo. Dessa forma, as bases adotadas pelo Banco Central para conduzir a política monetária estariam equivocadas.
Por que, então, adotar regras que não correspondem mais a realidade econômica atual? Porque é um parâmetro ainda melhor para os objetivos do mercado: inflação controlada em níveis muito baixos e juros nas alturas. Afinal, é essa fórmula que garante que os juros reais brasileiros sejam os mais altos do mundo. Sendo o Banco Central dirigido por pessoas a serviço do mercado financeiro, com autonomia para manter os juros altos, mesmo que em prejuízo dos demais, fazem isso promovendo ao mesmo tempo o ganho que os fortalece e a desgraça da maior parte da população.
Parece absurdo e é. Mesmo assim, não se pode esperar mudanças a curto prazo. Afinal, foi dado a um órgão do Estado Brasileiro o poder de determinar os destinos da política monetária, que interfere na vida de todos, de forma completamente descomprometida com as demandas sociais e atrelado aos interesses do mercado financeiro. Não acredito que alguém imagine banqueiros conduzindo as taxas de juros direcionadas a gerar empregos e reduzir desigualdades.
Temos no Brasil um suposto Estado laico, mas esqueceram de exorcizar os demônios que o mercado financeiro trabalha para propagar, a começar pelo medo. O dragão da inflação foi símbolo do maior perigo para os brasileiros. A narrativa construída pelos financistas sustenta medos que, diante da falta de conhecimentos econômicos da população, legitima teses cujo objetivo é sempre o mesmo: tirar o máximo de quem tem tão pouco.
Porém, essa versão demoníaca que o mercado financeiro utiliza teve a conivência de setores da imprensa, cooptados ou comprados para reproduzirem o mesmo discurso. Praticamente, a unanimidade dos jornalistas que pautam a questão econômica utiliza dos mesmos chavões dos engenheiros do mercado financeiro e apelam aos “mandamentos” econômicos para justificar absurdos como a atual taxa Selic do Brasil.
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Falta razoabilidade e coerência em muitos casos, porque até aqueles jornalistas que em alguns momentos cobram medidas para a economia voltar a crescer, gerar empregos e melhorar a renda do povo brasileiro, na hora que a taxa Selic é mantida em valores absurdos, reproduz os argumentos dos financistas. O discurso dos fundamentos econômicos serve para tudo que favoreça a divindade mercado financeiro, para o qual o BC está a serviço.
Apelar para fundamentos econômicos, em meio a ignorância generalizada em relação a economia, é como dizer: não questione, porque você não sabe nada sobre o assunto e é o melhor para você, mesmo que sua vida só piore, mas pior ainda é o terrível dragão da inflação.
Que o mercado financeiro é cruel e desumano não tem novidade alguma nisso. Agora, é inadmissível que o jornalismo econômico esteja a serviço dos interesses capitalistas, não levando em conta minimamente a questão social. Reproduzem palavras e frases do jargão financeiro, fazem a análise que interessa a banqueiros e especuladores, sem jamais desconstruir as simulações matemáticas tendenciosas, que sempre apontam para a pior solução no que diz respeito à maioria da população.
Em um país que quem ganha mais de R$15mil reais por mês faz parte do 1% mais rico da população, esse dado devia ser suficiente para um profissional de imprensa, que se predispõe a fazer análises sobre a economia, tratar do problema em bases reais. A política monetária é um agente de exclusão e desigualdade. As fórmulas que o Banco Central aplica para estabelecer a meta inflacionária e a taxa Selic servem a uma parcela ínfima, muito menor que esse 1% mais rico. Denunciar esse mecanismo desumano deveria ser o trabalho da imprensa e não aliar-se ao mercado financeiro.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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