Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Os conceitos exercem funções diversas: hipóteses de verdades, esperanças de melhorias sociais, bandeiras ideológicas, futuros utópicos.
O exemplo do dia das mulheres é paradigmático. Uns gritam sob os holofotes de que é preciso parar os feminicídios, enquanto outros clamam pela empatia dos homens, outros ainda criam normas, leis, aparatos jurídicos para que a velha ordem paternalista reconheça intimamente que seu poderio já está esgotado. Nada disso é suficiente para tornar a justiça social minimamente melhor, nem dirimir o assassinato de mulheres.
O poder zanza na mão de uns e de outros.
Ao empoderamento feminino a resposta da machosfera; Ao grito por justiça mais empoderamento feminino. Não se consegue qualificar que é o poder o maestro da violência. E é extremamente difícil entender que contra a força da violência do paternalismo seja inútil e principalmente causador de mais violência pelo empoderamento de minorias. No final das contas continuarão morrendo as mulheres, os negros e os LGBTQ+.
Não é contraditório que o empoderamento tenha provocado uma sensibilidade extraordinária em seus usuários, pois agora são portadores de ferramentas jurídicas eficientes para reparar o mal feito.
O paternalismo nesse estágio histórico não é prioridade de homens, mas é insuflador das violências (bastaria que pudéssemos perceber o quanto de mulheres ocupam posições de poder em empresas, em países, ou negros assumindo a presidências de países importantes, para percebermos que não são capazes de diminuir o sofrimento geral dos cidadãos, mulheres, negros, homossexuais ou não). Bastaria também contabilizamos o crescimento vertiginoso do assassinato de mulheres depois de engendrada a lei Maria da Penha.
Efemérides como o dia das mulheres, como o dia da consciência negra e outras, servem para injetar nos novos usuários do poder ,justificativa para que ingressem sem perceber na esfera do velho paternalismo rançoso e arrogante. Mas também para que se instale uma percepção de que só existem dois lados, o do oprimido e o do opressor, o da vítima e o do carrasco. É a consumação plena da heteronomia e a erradicação de qualquer possibilidade autônoma.
Não nos damos conta de que a elegância da autonomia é capaz de decidir qual o lugar social queremos ocupar, pois a crença de que a sociedade capitalista determina esse lugar é confortável e até certo ponto, libertadora: podemos agir a espera da revolução, em que o mundo mais justo virá, se continuamente lutarmos por justiça. Eis a utopia social escancarada diante de nós todos os dias, lembrando que não fizemos o suficiente e quando ocupamos algum lugar de privilégio dado pelos empoderamentos, nos tornamos combatentes sociais para beneficiar com o mesmo privilégio nossos irmãos em luta.
A elegância da autonomia é de outro lugar. Um lugar em que o indivíduo determina a proteção de sua psique e decide não ser atacado pelas humilhações sociais fartamente disponíveis a todo momento nas mídias.
Há um ditado que aproxima semanticamente humildade de humilhação. Ambos têm na raiz no termo húmus que significa merda. Humilhação é quando te jogam na merda contra a sua vontade; Humildade é quando você pula na merda voluntariamente.
Pode ser insidiosa essa aproximação, mas serve para reconhecermos a diferença entre autonomia e heteronomia: se pulo na merda voluntariamente estou capacitado para reconhecer que as danações históricas e sociais existem como ideologia e não me deixo caracterizar por elas, usando a irreverência como uma membrana flexível para sanear a minha vida. O exemplo de um jogador de futebol que ao ser atingido por uma banana num jogo, sentou no chão, descascou a banana e comeu é o alto-auto lugar da irreverência e da autonomia.
Sei que é muito difícil considerar um lugar de sanidade encontrado pela autonomia e pela irreverência no interior de uma sociedade patologicamente desigual. E ao sugerir essa alternativa reconheço que pode parecer risível e tola. O exemplo a seguir deve ser considerado exatamente no lugar de sanidade conquistado por uma mulher segundo suas possibilidades de autonomia e irreverência.
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Uma amiga feminista militante me contou essa história. No prédio onde mora, todas as manhãs quando saí do apartamento, encontra a vizinha que sai para fazer sua corrida matinal. Todos os dias se cumprimentam e ela percebe hematomas no braço, no pescoço, eventualmente no rosto. A mulher não esboçava nenhum constrangimento, até o dia que minha amiga feminista sugeriu a ela que denunciasse o agressor. A mulher esboçou um sorriso largo e confessou:
Esse homem me tirou da casa dos meus pais, me trouxe para viver com ele legalmente, abençoado pelo matrimônio, assumindo a condição de provedor. De fato ele me bate eventualmente; Eu decidi encontrar um amante. Todos os dias faço minha corrida e a tarde antes do retorno do marido, encontro meu amante. Após o sexo oral me recuso a lavar boca e volto ao lar sagrado da minha família aguardando o beijo do retorno do senhor. Me recuso a trabalhar e ele terá que me sustentar até o último dia provando do semêm daquele que me satisfaz.
Exemplos como esses são difíceis de serem rastreados porque estamos atentos a respostas previsíveis e socialmente válidas.
O caso a seguir aconteceu numa escola da prefeitura de São Paulo. Um garoto entra na escola no meio período letivo. Pelo jeito cresceu numa família em que sua sexualidade não foi reprimida e andava com desenvoltura nos corredores da escola. O mal estar causado entre os estudantes foi crescendo, exigindo a intervenção dos professores, pois as piadinhas, as agressões verbais, a exibição da discriminação não cessaram. O menino não parecia capitalizar essas agressões. Até que um dia o grupo dos valentões o parou no pátio no momento do recreio e destilou todo seu preconceito diretamente para ele. Sua reação foi pedagógica, olhou o valentão no olho e bem alto vociferou:
” Ah, você quer me comer né? Por isso está com raiva”!
Nunca mais precisou que a instituição levantasse a bandeira do respeito ou da aceitação da diferença.
Assim é a irreverência: se ela não é capaz de mudar as injustiças, é capaz de recompor na intimidade algum riso, alguma diversão e uma mente que não se deixa reduzir diante da crueldade do social.
Thomas Khunn produziu uma das obras mais importantes no conceito de paradigma. Nessa definição o paradigma consiste num conjunto de valores e de crenças que marcam a sociedade num determinado momento histórico, sob essa perspectiva, antes que o esgotamento de um conjunto de crenças e valores se verifique outros valores e crenças vão emergindo até assumir o lugar do anterior. Isso vale para o social, isso vale para a ciência, isso vale para educação. É assim que os estudiosos vêm lidando com o conceito. Então a uma sociedade com certo grau de desigualdade, os aprimoramentos geram uma sociedade com grau menor de desigualdade. A uma ciência primitiva segue uma ciência mais sofisticada que justifique a maior longevidade humana atual. A uma educação mais repressiva segue processos em direção à uma educação mais humanizada.
Podemos perceber aí dois fundamentos do paradigma atual: o evolucionismo e o progresso.
Quero propor outro caminho paradigmático que não será nem revolucionário, nem progressista.
Acreditamos que o que nor torna humanos e diferentes das outras espécies vivas é a nossa capacidade de pensar, nosso cérebro desenvolvido e o polegar opositor. Não nos damos conta de que antes da soberania humana apontada pelo humanismo, tivemos uma jornada no planeta sem impactar qualquer outra espécie. No entanto, nesses últimos 500 anos estamos diante dos danos ao planeta e a vida, clamando com as bandeiras utópicas para o fim das emissões de carbono, para o fim da destruição da vida, para o fim desse período chamados por alguns de antropoceno.
O paradigma da racionalidade só será superado pelo fim da racionalidade.
O jogador de futebol que descascou a banana e comeu a agressão diante de milhões de espectadores, usou um sentido misterioso para reverter a agressão, assim como a vizinha de minha amiga feminista não está pautada por um tipo de inteligência racional em defesa de sua saúde. Ou do garoto que contra toda agressão do preconceito, exibe orgulhoso a sua sexualidade.
Não vejo outro jeito de recusar o ” sempre foi assim”, de eliminarmos da carga da linguagem o peso que o termo mulher carrega como uma desiguladade eterna, ou que o humano amoroso não conceba a hipótese de cartar o seu bixo de estimação para o bem dele.
Não sei qual será o próximo paradigma, mas certamente não será revolucionário, progressista, humanista ou racional.
Enquanto esse prevalecer ficaremos com o anátema de Thomas Khunn, bradando a justiça por mulheres, por negros, por homossexuais, por índios, por…
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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