Bolsonaro, depois de negativas, admitiu estar na posse de joias valiosas enviadas pelo sanguinário ditador da Arábia Saudita. Michelle nem ousou, ao contrário do ex-presidente, arguir a tese do "presente de cunho personalístico". A sua tese jurídica é bem diversa e contrasta com a apresentada pelo marido
Blog do Wálter Maierovitch
Negar a evidência não é uma boa tese jurídica de defesa. Talvez por isso, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) resolveu promover uma leitura particular do artigo 312 do Código Penal, a evitar o seu enquadramento.
O artigo tipifica o crime de peculato e diz o seguinte: “Apropriar-se o funcionário público de dinheiro, valor ou qualquer outro bem móvel, público ou particular, de que tem a posse em razão do cargo, ou desviá-lo, em proveito alheio. Pena: reclusão de 2 (dois) a 12 (doze) anos e multa”.
Bolsonaro, depois de negativas, admitiu estar na posse de joias valiosas enviadas pelo sanguinário ditador da Arábia Saudita. Tais joias com o ex-presidente como destinatário não foram retidas na alfândega.
E disse mais: trata-se de um presente “personalíssimo”, ou seja, seu e não da nação brasileira, representada pela União.
Com o “personalíssimo” —no sentido de ínsito à pessoa do presenteado— Bolsonaro tenta, juridicamente, dizer que não teve a intenção, o dolo, de se apropriar de bens da União. Isto por entender serem as joias da sua propriedade.
A sua descontrolada avidez —conhecida desde o tempo de oficial do Exército com incursões em prática de garimpo— fez Bolsonaro manter as joias na sua posse. Se estivesse bem-intencionado, depositaria o presente, até solução final sobre a eventual procedência.
Como se diz em gíria, essa tese é manjada e não cola. Já foi utilizada em defesa pelo ex-presidente francês Valéry Giscard d’Estaing. Ele recebeu 200 diamantes puros do ditador centro-africano Bokassa 1º. O ditador-imperador, quando da colonização francesa, era sargento do exército francês.
Internacional e nacionalmente, os sistemas republicanos, para evitar cooptações e corrupções, funcionam com rígidas regras éticas e proibições expressas.
Como regra, o presidente da República recebe um mandato por tempo determinado dos eleitores. Enquanto está no cargo, ele personifica a nação. Um presente recebido por chefe de Estado pertence aos cidadãos. Dessa maneira, todo e qualquer regalo, mimo, pertence ao tesouro da nação. Integra-se ao patrimônio da União.
Exceção à regra ocorre quando o presente tem natureza nitidamente pessoal, a não caracterizar cooptação, adulação interesseira.
São inúmeros os exemplos de mimos singelos e significativos:
↘ As gravatas Marinella, presente sempre entregue pelo primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi, nos encontros do G7.
↘ Cleópatra deu um valioso tapete ao imperador romano Júlio Cesar. Sua intenção era ter as forças armadas romanas ao seu lado.
↘ O presidente russo Vladimir Putin deu 12 caixas de vodka, produto russo por excelência, a Berlusconi, que por sua vez, retribuiu com caixas de prosecco. Não se cogitou de peculato.
No caso Bolsonaro, os bens eram valiosos demais para enquadramento em despretensioso mimo saudita. São joias preciosas, da famosa joalheria suíça Chopard, fundada em 1860, fornecedora de realezas e artistas famosos. A grife até engrossou o tesouro do último czar russo, Nicolau II.
Em síntese, Bolsonaro, em futuro processo criminal, deverá depositar em juízo as joias para tentar caracterizar a sua boa-fé, a ausência de dolo, ou melhor, não haver atuado com intencional e criminosa apropriação dos bens.
Michelle diverge de Bolsonaro e diz que não sabia
No centro do Rio de Janeiro, à rua do Ouvidor, número 139, trabalhava o famoso ourives Carlos Marin.
Ele foi o confeccionador, em julho de 1841, da coroa imperial de Pedro II, tida por mestres do porte de um Louis Chopard como uma das mais belas. Nem aquela tirada por Napoleão Bonaparte das mãos do papa Pio VII era tão preciosa e bonita.
Na coroação, Pedro II tinha 15 anos de idade e aguentou firme a coroa de ouro com quase dois quilos, 639 brilhantes e 77 pérolas. Aviso aos navegantes: não consta visita de Jair Bolsonaro ao Museu Imperial de Petrópolis, onde a coroa fica exposta.
Depois de meio século como chefe de Estado, Pedro II deixou o cargo, após proclamação da República, sem querer levar a coroa, os tesouros e as joias da coroa.
Pedro II não se apropriou de absolutamente nada. E nem tentou surrupiar nada do Brasil As joias e riquezas eram do Brasil e não do imperador. E ele deixou aqui a sua joia de maior brilho e valor.
Veio a República com os cidadãos a escolher os seus representantes por mandato com tempo certo. Junto chegou a soberania popular. E estabeleceu-se a regra de o governante não poder confundir o patrimônio público com o privado.
Pelo revelado, um segundo e retido pacote de joias enviadas pelo ditador saudita teria como destinatária a então primeira-dama, Michelle Bolsonaro. As joias apreendidas legalmente pela Receita Federal estão avaliadas em R$ 16,5 milhões.
Michelle nem ousou, ao contrário de Bolsonaro, arguir a tese do “presente de cunho personalístico”, subjetivo.
A sua tese jurídica é bem diversa e contrasta com a apresentada pelo marido. Ela negou ter conhecimento do acontecido. Não sabia dos presentes, frisou em defesa.
Até o momento, não existem elementos a ligar Michelle aos desesperados atos do marido de se apropriar a qualquer custo das valiosas joias apreendidas. Até das que teriam sido destinadas à própria esposa.
Bolsonaro, como presidente da República e por oito vezes, tentou obter os bens apreendidos, com “carteiradas”. Até usou mensageiro deslocado em avião da FAB. E pressionou a não mais poder.
Existe prova das tentativas de Bolsonaro de ludibriar a Receita Federal e receber os bens que, pelo andar da carruagem, levaram à liberalidade do ditador com intenção de presentear Michelle.
Com a negativa de Michelle, Bolsonaro fica em situação pior. Na verdade, Bolsonaro empenhou-se em liberar as joias.
A pergunta que não quer calar é se iria Bolsonaro repassá-las à esposa Michelle. Apenas investigações cuidadas poderão demonstrar eventual envolvimento de Michelle num “pactum sceleris” (pacto criminoso) com o esposo Jair Bolsonaro.