Médicos bolsonaristas vendem "terapia de reversão vacinal" por R$ 1,8 mil
Detox vacinal: médicos bolsonaristas estão ganhando muito dinheiro com "tratamentos" para remover do corpo os efeitos da vacina da Covid-19. Preços vão de R$ 472 a R$ 1,8 mil, dependendo do profissional
Thais Porsch,TAB
O telefone comercial do médico Marcos Falcão enumera os serviços oferecidos pelo profissional: “Tratamento precoce, tratamento pós-Covid, tratamento Covid, solicitação de exames”.
A reportagem do TAB entrou em contato com o alagoano por WhatsApp, para questionar como funciona o procedimento e simular uma consulta, após acessar grupos antivacina pelo Telegram, além do grupo “Médicos pela Vida”, conhecido por defender o chamado tratamento precoce e por semear dúvidas sobre a eficácia das vacinas contra a covid-19.
“É online, por meio de mensagens e áudios. Havendo necessidade, o doutor faz ligações“. É assim que ocorrem as consultas virtuais com o médico, que realiza um suposto “detox vacinal” ao preço de R$ 470.
Na consulta com a reportagem, Falcão receitou medicamentos como ivermectina “para retirar a proteína spike” — o encaixe químico usado pelo vírus para infectar as células humanas — vitaminas, anti-inflamatórios e uso de “aspirina 100 mg por dia pelo resto da vida”, além de diversos exames para realizar uma desintoxicação dos “efeitos nocivos da vacina”.
Medicina política
Falcão se identifica como “Cidadão livre para dar minhas opiniões” no Instagram. Com um canal no YouTube com mais de 287 mil inscritos, posta vídeos com críticas ao atual governo e em apoio ao ex-presidente. Seu perfil soma mais de 72 mil seguidores.
O contato comercial divulgado na página também anuncia que o médico assina atestados que isentam a vacinação contra a covid-19.
Pelo WhatsApp, é passada uma lista de doenças e condições que livram o paciente de se imunizar. Quando é dito que o paciente em questão não tem nenhuma dessas doenças, o contato responde que o médico consegue o atestado, sim. “O doutor passa alguns exames.”
Ao fim da conversa por aplicativo, após fornecer as receitas e os pedidos de exame, o médico informa que o tratamento tem duração de quatro semanas. O cliente deve entrar em contato para informar quais foram as melhoras e os sintomas para que se façam ajustes.
A reportagem tentou confirmar estas informações sobre o tratamento com Marcos Falcão após a consulta, por WhatsApp. Ele não quis conversar. Afirmou que aquilo era “mau uso da profissão” e alegou quebra de sigilo médico-paciente (na realidade, a condição salvaguarda as informações do paciente, não o contrário).
Segundo uma publicação no site do Ministério Público do Paraná, “mesmo a prescrição de substâncias inócuas (como um simples copo de água, por exemplo), que por si só não causam nenhum dano”, pode configurar prática de curandeirismo e ser enquadrada como crime, pelo artigo 284.
Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), a comunicação entre médicos e pacientes pelo WhatsApp não pode ser enquadrada como telemedicina (prática regulamentada) ou um espaço para consultas. O aplicativo deve ser usado apenas para tirar eventuais dúvidas e manter contato.
A respeito da prática de “detox vacinal”, o Conselho afirmou em nota: “Para manter sua isenção, o CFM não comenta preliminarmente casos concretos. Qualquer denúncia contra médicos deve ser direcionada inicialmente ao CRM do estado onde aconteceu o episódio para obter outras informações”.
Um entre tantos
Entre os médicos citados nesses grupos está Maria Emilia Gadelha Serra. Otorrinolaringologista pela USP e fundadora da Associação Brasileira de Ozonioterapia (Aboz), ela cobra, em sua clínica num bairro de alto padrão em São Paulo, R$ 1,8 mil para realizar uma “terapia de reversão vacinal”, afirmando anular supostos “efeitos adversos” — as reações comuns à própria vacina, como dor muscular —, segundo apuração do podcast “Ciência Suja”, em parceria com o Instituto Questão de Ciência. Seu perfil comercial também divulga a oferta da terapia no grupo, mas o CFM não autoriza a prática de ozonioterapia no Brasil.
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Maria Emilia é uma das principais vozes do movimento antivax no país e ganhou projeção em 2014, combatendo a vacina contra o HPV. Em 2022, saiu candidata a deputada federal por São Paulo pelo PRTB, mas não foi eleita.
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Uma publicação compartilhada por Maria Emilia Gadelha Serra (@draemiliaserra)
Segundo o advogado e especialista em Direitos do Paciente Luciano Brandão, qualquer médico tem autonomia para prescrever o tratamento que entende mais adequado (mesmo que se trate de uma prescrição “off label”, ou seja, que não segue as indicações de eficácia comprovada para aquele fármaco), desde que não se trate de procedimento proibido ou considerado experimental pelo CFM ou pela Anvisa.
“É obrigação do médico informar o paciente detalhadamente sobre as características e riscos do tratamento, bem como assumir a responsabilidade por eventuais efeitos adversos decorrentes de sua prescrição. O paciente que eventualmente sofrer danos ou se sentir lesado por uma prescrição sem embasamento científico pode questionar a responsabilidade do médico tanto na esfera judicial como na esfera ético-profissional pelo seu CRM”, reitera Brandão.
Outro nome que desponta em referências no Telegram é o do neurocientista José Augusto Nasser, que vende um curso chamado “Detox Covid-19”, em que ensina a “clareza dos métodos detox contra as substâncias tóxicas das vacinas e da COVID-19 a partir de informações com base científicas e validadas por estudos médicos”, pelo preço de R$ 497.
Em grupos de Telegram também é compartilhado seu “protocolo pós-vacina para desintoxicação” (entre os “elementos nocivos” citados estão a proteína spike e “metais pesados”; não há metal pesado em vacinas), que incluiu ivermectina, chás, vitaminas e zeólita, um suplemento mineral proibido pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Em conversa pelo WhatsApp comercial do médico, foi dito: “As consultas são online e custam R$ 800. A consulta será feita por videochamada no WhatsApp pelo Dr. Nasser”.
Questionado sobre a oferta de desintoxicação vacinal, José Augusto Nasser diz que os pacientes que o procuram apresentam inúmeros sintomas, “principalmente na área cardiovascular e neurológica”, e que os tratamentos são feitos baseados em suplementações vitamínicas e, se necessário, medicamentos, além de tratamento de covid longa. O médico também afirma que fornecer mais informações violariam o sigilo médico.
“Você inventa um problema para vender a solução”, diz a microbióloga Natalia Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência. “A desinformação pode estar relacionada a produtos, seja um livro, um DVD, uma newsletter ou um estilo de vida natural que vai te livrar dos ‘males da vacina’.”
Segundo Natalia, o sentimento antivax surgiu primeiramente entre grupos que buscavam um estilo de vida mais natural, adeptos do consumo de produtos orgânicos e práticas que se denominam integrativas ou alternativas. Mas o conceito de “natural” — que por muito tempo esteve ligado a uma visão contracultural mais à esquerda, mas sempre “antissistema” — vem sendo cada vez mais abraçado por grupos de extrema direita, aliado à ideia de liberdade e do Estado mínimo.
Outro nome citado em grupos de Telegram é o do “especialista em tecnologias biofísicas aplicadas à saúde” Ednir Nascimento, que realiza “tratamento de desintoxicação através da biorressonância”. Segundo ele, “a vacina tem frequência. Eu uso uma frequência que anula seus efeitos deletérios”. São de 5 a 10 sessões que custam de R$ 80 a R$ 100 cada uma. A consulta para diagnóstico é de R$ 300 e não há restrição de idade.
O pediatra infectologista e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, esclarece que “não é possível reverter uma resposta imune”. “Qualquer terapia ou procedimento nesse sentido é charlatanismo.”
Uma secretária de Ednir Nascimento, assim como o próprio médico, confirmaram a oferta de biorressonância e os procedimentos. Quando a reportagem tentou contato dias depois, não houve mais resposta para esclarecimentos.
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