Rabiscos inusitados em livro de 1.300 anos ficaram quase invisíveis a olho nu. Ninguém sabia que eles estavam ali, até o ano passado. Os traços foram destacados digitalmente e agora é possível saber do que se trata
Richard Fisher, BBC
Cerca de 1,3 mil anos atrás, uma mulher pegou um livro precioso e rabiscou letras e desenhos nas margens.
Ela não usou tinta – apenas arranhou o papel – e os rabiscos ficaram quase invisíveis a olho nu. Ninguém sabia que eles estavam ali, até o ano passado.
O livro é uma cópia dos Atos dos Apóstolos, parte do Novo Testamento, datada do século 8°. Ele agora está guardado na Biblioteca Bodleiana, na Universidade britânica de Oxford.
Os pesquisadores sabiam há algum tempo que o texto religioso provavelmente seria de propriedade de uma mulher, mas não tinham certeza de quem se tratava.
Até que, em 2022, a pesquisadora Jessica Hodgkinson, da Universidade de Leicester, também no Reino Unido, decidiu dar uma olhada mais de perto e ficou surpresa ao descobrir um rabisco escondido na página 18, exatamente abaixo do texto em latim.
Os traços foram destacados digitalmente e agora é possível ver as letras com clareza: “EaDBURG BIREð CǷ…N”.
Significado incerto
A última palavra está incompleta. E análises posteriores revelaram que o livro foi deliberadamente arranhado com algum objeto contundente em mais quatro páginas.
Qual pode ser o significado?
Hodgkinson interpretou o primeiro símbolo como uma cruz, seguida por “Eadburg” – quase com certeza, o nome da dona do livro.
Não se sabe muito sobre ela, mas Hodgkinson e sua equipe suspeitam que Eadburg fosse uma freira – a abadessa de uma comunidade religiosa de Minster-in-Thanet – uma vila no condado de Kent, na Inglaterra.
As letras seguintes são um pouco mais enigmáticas. Talvez elas possam significar “está na cwærtern” – “prisão”, em inglês arcaico.
O trecho em latim acima dos rabiscos descreve a prisão dos apóstolos e Eadburg pode ter traçado um paralelo com a sua própria situação.
O mais curioso é que Hodgkinson e seus colegas encontraram desenhos de pessoas em outras páginas.
Em uma das margens, uma figura quadrada com os braços estirados – uma freira, talvez? Em outra, uma pessoa estendendo sua mão contra o rosto de um companheiro triste. Será que ela não queria ouvir o que a outra pessoa estava dizendo?
Enfim, o significado dos desenhos é um mistério. E os rabiscos nas margens do livro de Eadburg não são os únicos escritos e desenhos descobertos em Oxford nos últimos meses.
Hodgkinson pôde encontrar as gravuras de Eadburg graças a uma nova tecnologia de formação de imagens da Biblioteca Bodleiana, que consegue mapear a textura física e os contornos das páginas dos livros e manuscritos ou da superfície de outros objetos históricos, como placas de impressão.
Esse mapeamento detalhado revela marcas que, de outra forma, seriam invisíveis a olho nu, ou mesmo com câmeras comuns.
“A superfície traz consigo uma imensa quantidade de informações”, explica Adam Lowe, fundador da Fundação Factum em Madri, na Espanha – a organização sem fins lucrativos que produziu a tecnologia para a biblioteca de Oxford, como parte do projeto Archiox (sigla em inglês para Análise e Registro do Patrimônio Cultural em Oxford).
Lowe afirma que “quanto mais você puder tornar visível, mais descobertas verdadeiramente impressionantes irão surgir”.
Os pesquisadores do projeto Archiox utilizam dois aparelhos para criar representações digitais de páginas e objetos. Um deles chama-se “Selene”. Ele tem quatro câmeras capazes de capturar diferenças de relevo das superfícies de até 25 micrômetros (0,025 mm).
O outro é “Lucida”, que emite lasers e possui duas câmeras minúsculas para criar varreduras 3D.
“Tudo pode ser medido. Não é apenas uma ferramenta de formação de imagens, é também um instrumento de medição. E isso torna tudo mais fascinante”, destaca John Barrett, fotógrafo da Biblioteca Bodleiana e líder técnico do projeto Archiox.
A tecnologia está sendo usada no porão da Biblioteca Bodleiana para criar representações digitais de diversos itens da sua coleção. E o livro de Eadburg não foi o único documento com séculos de idade a revelar rabiscos escondidos.
Em um manuscrito do século 9º, os pesquisadores do projeto Archiox mapearam uma cena de caça arranhada na sua superfície.
E, abaixo dos animais, foi encontrada a palavra “RODA”, provavelmente relacionada ao dono do livro. Barrett afirma que “isso nunca havia sido observado”.
Por que as pessoas arranhavam seus nomes em livros e acrescentavam desenhos quase invisíveis como esses? Bem, em relação aos nomes, pode ter sido simplesmente para mostrar quem era o dono da obra, sem rabiscar um precioso texto religioso.
“Estes manuscritos eram considerados sagrados. E, mesmo que quisesse deixar sua marca neles, você não iria querer ser óbvio demais”, explica Barrett.
E, sobre as figuras, “não acho que elas tenham sido necessariamente rabiscadas de propósito”, afirma ele. “Muitas vezes, essas anotações e certamente outras que registrei mais recentemente tinham, sem dúvida, relação com o próprio texto.”
Placas de cobre
Alguns dos primeiros objetos da coleção da Biblioteca Bodleiana a serem examinados para o projeto Archiox foram as placas de impressão de cobre com 200 a 300 anos de idade, que formam a chamada coleção Rawlinson. Elas foram selecionadas por Alexandra Franklin, coordenadora do Centro de Estudos do Livro, e Chiara Betti, estudante de PhD da Universidade de Londres.
Um exemplo de gravação que antes estava oculta e foi revelada pela tecnologia Archiox é o de uma placa que, na frente, inclui o retrato de um influente cardeal francês. Mas, quando os pesquisadores olharam o verso da ilustração, parecia haver uma partitura musical quase apagada.
A tecnologia permitiu observar as notas com total clareza. “Provavelmente, [a melodia] foi inspirada pelo Salmo 9, pois as palavras [em inglês] parecem se encaixar”, afirma Barrett.
Em português, o Salmo 9 da Bíblia começa com estes dizeres: “Louvar-te-ei, Senhor, de todo o meu coração; contarei todas as tuas maravilhas. Alegrar-me-ei e exultarei em ti; ao teu nome, ó Altíssimo, eu cantarei louvores.”
Mas por que alguém teria feito isso?
“O material [cobre] era muito valioso”, explica Barrett. “Ele pode ter sido reutilizado ou simplesmente foi uma oportunidade para que o artista ou gravador pudesse praticar.”
Mas ele ressalta que não existe impressão conhecida daquela música feita a partir da placa. Por isso, sua descoberta acrescentou um novo item ao registro histórico.
“Ela não foi registrada na referência catalográfica da placa. São descobertas totalmente novas que estão sendo feitas”, afirma Barrett.
“Eu diria que, provavelmente, um terço das placas analisadas para o Archiox tinha também alguma coisa na parte de trás. Muitas vezes, os desenhos são muito bonitos, estranhos ou misteriosos”, segundo o pesquisador.
Mapas e artistas
A tecnologia do projeto Archiox também revelou novas indicações sobre as técnicas de criação dos objetos. Foi o caso de um mapa historicamente importante.
“Trata-se do mais antigo mapa reconhecível das ilhas britânicas, datado do século 14”, afirma Barrett.
A varredura da superfície pela equipe do projeto Archiox revelou que “ele está absolutamente repleto de furos de alfinete, mais de 2 mil deles… pontos como catedrais, rios e outros foram alfinetados ou marcados”, segundo Barrett.
Isso indica que o mapa foi copiado, pois os fabricantes de mapas teriam usado alfinetes para ajudar na reprodução. Eles teriam depositado o mapa original sobre a réplica, usando objetos pontiagudos para marcar locais importantes sobre o material abaixo do mapa.
“Você pode imaginar que esse mapa original provavelmente teria sido usado para gerar outros mapas, mas, na verdade, é o contrário”, afirma ele.
O mapeamento da superfície revelou que “os buracos de alfinete não perfuram totalmente o mapa. Por isso, podemos deduzir que este mapa, na verdade, foi copiado de uma matriz: um mapa anterior.”
E a tecnologia do projeto Archiox também está ajudando a revelar novas indicações sobre o talento artístico que levou à criação das obras.
Quando os pesquisadores do projeto Archiox analisaram a superfície de uma impressão japonesa em blocos de madeira, eles perceberam que o artista havia acrescentado texturas que ele saberia que seriam invisíveis para o olho humano.
Quando observamos o rosto da figura e o arco em volta da cabeça, ambos impressos com a mesma cor, a tecnologia nos permite ver a diferença de textura.
“Você se pergunta por que cargas d’água o impressor se deu ao trabalho de fazer esse trabalho realmente incrível de entalhe e gravação, se ele não pode ser observado”, questiona Barrett.
Seria para mudar a forma em que a luz é refletida na impressão acabada? Talvez. Mas o pesquisador tem outra opinião.
“Acho que a resposta é que foi um ato de amor. Essas coisas eram feitas da forma mais perfeita possível. Ele traz uma nova perspectiva das técnicas envolvidas na sua produção, que você realmente não tinha antes, apenas fotografando com a tecnologia convencional.”
Lowe sugere que, com esta nova abordagem, pode haver milhares de novas descobertas esperando para serem encontradas, ocultas à vista de todos nas bibliotecas e galerias de arte.
“As pessoas estão começando a perceber que as ‘informações sobre o relevo’ estão transformando o nosso conhecimento”, explica ele. “Deve haver objetos nas bibliotecas de todo o mundo que podem se beneficiar dessa tecnologia… é questão de tratar os objetos materiais como evidências.”
“Existem muitas coisas que sabemos, mas existem também muitas outras que podem ser descobertas. E acho que este é um pensamento incrivelmente estimulante e inspirador”, conclui ele.
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