Alguns prefeitos gabam-se de terem diminuído em não sei quantos por cento os índices de reprovação. Diminuir repetência é fácil. A pergunta que deveria ser feita a esses administradores é: “os estudantes aprenderam ou só passaram de ano?”
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Quando perguntada a sua opinião sobre porquê ensinar as crianças, Lya Luft foi enfática, pra mim, definitiva: “para que não sejam burros!”.
É isso. A escola serve para que o indivíduo possa não ser “burro”. O “burro” aqui e pra Luft não diz respeito à pouca capacidade cognitiva, derivada, muitas vezes, de sérios problemas neurológicos. É justamente ao contrário, a escola serve (ou deveria servir) para fazer com que o indivíduo aproveite ao máximo as suas capacidades intelectuais. Ou seja, o burro ao que se referia a escritora seria aquele sujeito que, mesmo tendo capacidade, não a aproveita, e sai da educação básica sabendo bem menos do que deveria (e poderia) saber.
Esses indivíduos que têm capacidade, mas não sabem muito, vão chegar no Ensino Médio sabendo menos do que se espera. Muitos reprovarão. Mas, a depender da média de “sapiência” dos estudantes, os professores adequarão a dificuldade (quantidade de matéria) que lecionarão. E essa régua está cada vez mais baixa. Basta perguntar para qualquer professor de ensino médio há mais de dez anos. Sim, nossas crianças, embora com alta capacidade, estão “emburrecendo”.
Ao saírem do Ensino Médio, irão para os cursos superiores. Como não conseguirão vaga numa boa universidade, se formarão no método “Ctrl C + Ctrl V” dalguma faculdade à distância vendedora de diplomas. Eis os nossos profissionais dum futuro bem próximo, senão de agora.
Esse fenômeno é, obviamente, complexo e não pode ser explicado só por uma razão. Mas há um que muito me inquieta: a aprovação quase que compulsória em massa.
As modernas teorias pedagógicas, pensadas e/ou defendidas por doutores e PHDs que não entram num sexto ano há décadas, praticamente transferem para o professor toda a responsabilidade pelo não aprendizado do estudante. Para eles, são os professores que devem despertar o interesse dos seus pupilos; para questões de indisciplina (muitas vezes envolvendo agressões verbais como físicas), o professor que deve fazer formações para lidar com adolescentes que literalmente cometem crimes no espaço escolar; horários e regras parece ser um absurdo para alguns teóricos; notas, alegam, são excludentes e, muitas vezes, injustas (sic); há os que defendem que cada criança tem seu tempo de aprender, mesmo que chegue ao nono ano sem ter aprendido.
Não se trata aqui de ignorar facilidades e habilidades natas em detrimento de outras. Há os “matemáticos”, os “artistas”, os “escritores” e por aí vai. Mas a própria BNCC estabelece competências mínimas que cada estudante em cada ano deve saber. O que ocorre na prática, porém, é que, dependendo da rede de ensino, o estudante sai do nono ano sem saber interpretar uma frase ou fazer uma conta relativamente simples de matemática. E, nessas redes, reprová-lo não é opção.
Não se trata de defender que a escola seja uma reprodução da realidade. Acho que a escola deve ser “realidade”!
Se um candidato num concurso não conseguir escrever a redação, será automaticamente desclassificado. O mesmo ocorrerá se zerar a prova de raciocínio lógico. Se o trabalhador não pode se atrasar no trabalho, por que o aluno pode chegar com uma hora de atraso à escola, rindo e debochando dos demais que “tava boa a cama”? Se pichar prédio é crime, por que isso só rende um registro na ata se for feito na escola? Por que ocorre providências só parecidas quando ocorre agressão a um colega ou mesmo ao professor?
Os teóricos da educação acham que a Escola não é lugar de meritocracia. Só que, ao colocar os pés fora do pátio escolar, os estudantes precisam serem meritocráticos pra tudo. Assim como tiveram muito mérito os que fizeram doutorado e hoje recebem quatro vezes mais que um professor que eles ensinam dominando tão somente a teoria.
No meu entender, é quase um crime de falsidade ideológica quando os professores assinam a ata do conselho de classe atestando que um estudante sem as mínimas condições tem condições de ser aprovado. É como se um médico com o exame positivo de alguma doença em mãos a curasse colocando no diagnóstico que o paciente não sofre de tal moléstia.
Evidente que não querem ser “criminosos” os professores. Aprovam por pressões políticas, já que há um relativo elevado custo fazer o estudante repetir o ano. Digo custo relativo porque uma educação realmente de qualidade, sem números maquiados, não tem mensuração possível.
Além dos custos financeiros, há, claro o ganho de discurso. Alguns prefeitos gabam-se de terem diminuído em não sei quantos por cento os índices de reprovação. Diminuir repetência é fácil. A pergunta que deveria ser feita a esses administradores é: “os estudantes aprenderam ou só passaram de ano?” O paciente se curou da doença ou o médico só atestou uma mentira no diagnóstico? Eu insisto na provocação: se um médico não pode ocultar um câncer, por que os professores devem ocultar um não-aprendizado?
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Nessa esteira, estão em voga as escolas cívico-militares. Espera-se que um policial fardado faça valer a disciplina nas escolas. Eu afirmo: sem disciplina, não conseguimos nada na vida. Sem disciplina, não se aprende. Sem disciplina, seremos os burros na nossa acepção aqui do termo. Mas esse projeto de misturar escola com militarismo é totalmente dispensável. Basta devolver aos professores (e direção e toda a equipe que compõe o educandário) a autoridade que um dia já tiveram.
Evidente que não é um retorno à palmatória. Mas é preciso um equilíbrio. Passamos, em pouco tempo, de uma escola em que os professores batiam nos alunos (com a anuência da sociedade) para uma escola em que os alunos batem nos professores (com a omissão da sociedade e do poder público).
Rousseau já dizia: “a criança que não ouve ‘não’ será um adulto frustrado”. Para muitas crianças e adolescentes, a escola é o único lugar em que eles convivem com regras e horários. Os pais com jornadas de desumanas 44 horas semanais muitas vezes deixam os filhos à mercê, sem estabelecer bem claro uma rotina, horários e regras. Mas para alguns pesquisadores de gabinete, crianças e adolescentes devem na escola gerir o seu fazer de acordo com as suas vontades.
Enquanto isso, nas escolas militares, os estudantes fazem ordem unida pra receberem a tarefa do dia. Um exagero, acredito, mas há quem defenda que essa disciplina lhes prejudica?
As escolas “civis” não podem exigir disciplina. As militares ou cívico-militares sim. Eis uma discrepância.
É claro que os professores devem estar sempre se atualizando e aperfeiçoando seu fazer didático e seu modo de encarar a educação. O não aprendizado dos discentes devem ser minuciosamente analisados nos casos individuais como coletivos. Aulas mais atrativas são um desafio a ser buscado. Indisciplina, cada vez mais, também está presente na sala de aula e há que se buscar meios para amenizá-la.
Mas, ao que parece, o professor é o único responsável (ou responsabilizado) por todos os problemas da educação, do aluno rebelde ao desmotivado.
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Ao não se provocar o estudante a um maior esforço de aprendizado, seja por aprovações super facilitadas ou por não se aprofundar mais nos conteúdos trabalhados, ou mesmo ao não se tomar medidas disciplinares severas quando preciso, tira-se dele a possibilidade duma formação mais completa, com melhores condições de alcançar as oportunidades profissionais e de vida. Infeliz ou felizmente, a meritocracia e as disputas existem. E isso fica cada vez mais evidente ao se comparar uma boa e uma má-educação.
Acredito e muito no potencial dos nossos estudantes. Mas crianças e adolescentes precisam ser provocados, estimulados. Precisam também sim de regras e disciplinas, como ocorre em tudo na vida, repito. Não é justo deixá-los que se tornem “formados” sem conhecimento e preparo.
A transferência de culpa ao professor; essa maquiagem de números e aprovações descabidas; esse excesso de “sins”, desafiando Rousseau… enfim, uma educação pretensamente mais inclusiva, nesses moldes falaciosos que está em voga, na verdade, reproduz ou faz o resultado disso tudo reproduzir a realidade que se afigura: cada vez mais haverá desigualdade social entre os que tem meios econômicos e familiares de fazerem seus filhos estudarem e aqueles que não dispõem de tais recursos financeiros e humanos, pois, se nem pais os fazem estudar e nem os professores podem fazê-lo, serão os “burros” necessários ao capitalismo excludente.
P..S. Se a Lya Luft tivesse sido aprovada sem saber o mínimo, teria se tornado a grande escritora que foi?
P.S. 2 Toda a desvalorização do trabalho do professor, ao não ter seu poder de diagnóstico respeitado, acrescido com a convivência com a indisciplina cada vez pior e cada vez com menos meios de punição estão afastando os educadores da profissão e/ou os adoecendo.
*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”
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