Escravizados nas vinícolas do RS descrevem terror: “Nos acordavam às 4 horas da manhã, chamando a gente de 'demônio'. Nem força para trabalhar a gente tinha”. De acordo com a investigação, a comida já chegava estragada e era consumida com a mão; as jornadas de trabalho passavam de 15 horas por dia e os escravizados eram torturados com choque elétrico e spray de pimenta. Herdeira da vinícola Salton, Luciana Salton deu uma entrevista há alguns anos em que exaltava a meritocracia: “Temos um mantra: sobrenome não garante emprego. Estou aqui, na posição que ocupo, porque quis e me preparei para isso”
Em uma entrevista publicada na revista Veja em 2020, Luciana Salton exaltou a ‘meritocracia’ e disse que sua ascensão na vinícula não tem relação com o fato de ser uma das herdeiras.
“Não há protecionismo. Temos um lema entre nós, quase um mantra: sobrenome não garante emprego. Estou aqui, na posição que ocupo, porque quis e me preparei para isso. Passei a minha adolescência vivendo as férias na loja da Salton, em São Paulo, vendo meu pai, Ângelo, trabalhar”, disse Luciana, que é diretora executiva da Salton.
Três anos depois daquela entrevista, em fevereiro de 2023, a Polícia Federal e o Ministério Público resgataram mais de 200 trabalhadores escravizados em vinícolas gaúchas de Bento Gonçalves. A Salton é uma das empresas envolvidas.
Segundo as investigações, os trabalhadores teriam sido enganados após receberem promessa de emprego temporário, salário de 4 mil reais e, ainda, alojamento e refeições pagas.
A operação foi realizada após três trabalhadores procurarem a PRF, em Caxias do Sul, afirmando que haviam fugido de um alojamento – no Bairro Borgo, a cerca de 15 quilômetros dos vinhedos de Bento Gonçalves – em que eram mantidos contra a vontade. Os trabalhadores resgatados chegaram a ser alojados no ginásio Darcy Pozza, em Bento Gonçalves, até que pudessem voltar para casa.
Os 207 homens foram recrutados na Bahia pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que prestava serviços para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton – algumas das mais importantes produtoras da região.
Nos depoimentos, os trabalhadores relataram episódios de violência, tais como surras com cabo de vassoura, mordidas, choques elétricos e ataques com spray de pimenta, além de más condições de trabalho e de alojamento. Eles denunciaram ainda práticas como vales, multas e descontos nos salários, o que levou o MTE e o MPT a considerarem a situação como um regime de trabalho análogo à escravidão.
Os homens trabalhavam na colheita de uva de domingo a sexta, das 5h às 20h e sem pausas – apesar de serem forçados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos. Eles começaram a trabalhar no início de fevereiro, porém, surpreendidos com as péssimas condições de trabalho, tentaram ir embora do Rio Grande do Sul, mas chegaram a ser ameaçados e espancados. “Nos acordavam às 4 horas da manhã, chamando a gente de ‘demônio’. Nem força para trabalhar a gente tinha”, relata uma das vítimas.
Os trabalhadores disseram que recebiam comida estragada dos representantes da Fênix, que só podiam comprar produtos em um mercadinho perto do alojamento, com preços superfaturados, e que o valor gasto era descontado do salário. Por isso, os trabalhadores acabavam o mês devendo dinheiro para a empresa, pois o consumo superava o valor do salário. Eles contaram ainda que não podiam sair do local e que, se quisessem, teriam que pagar a suposta “dívida”. Além disso, os empregadores ameaçavam seus familiares.
As vinícolas Salton, Aurora e Cooperativa Garibaldi contrataram a Fênix, que oferecia mão de obra escrava. Porém, as vinícolas – que afirmaram desconhecer as irregularidades e que sempre atuaram dentro da lei – podem ser responsabilizadas, segundo Vanius Corte, gerente regional do MTE.
“As pessoas que tomaram esse serviço, as pessoas que foram beneficiadas por esse serviço, também podem ser responsabilizadas. Chamamos isso de responsabilidade subsidiária. Primeiro, o empregador tem a responsabilidade”, afirmou Corte.
“Se ele não pagar, as pessoas que trabalharam em determinada vinícola, que prestaram o serviço lá, podem cobrar, e nós vamos chegar nesse ponto, dessa vinícola que se beneficiou desse trabalho”, acrescentou.
Dos 207 trabalhadores resgatados, 194 partiram de ônibus do Rio Grande do Sul para a Bahia no início do sábado (25/02). Outros quatro trabalhadores preferiram ficar em Bento Gonçalves; e nove gaúchos retornarão de ônibus às suas cidades nos próximos dias.
Empresários dizem que culpa do trabalho escravo é do ‘Bolsa Família’
Após o resgate dos trabalhadores escravizados, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves (RS) relacionou o caso ao pagamento de benefícios sociais a trabalhadores pobres. Ou seja, a programas como o Auxílio Brasil e o Bolsa Família.
Em nota pública, o centro afirmou que o ocorrido tem conexão com “a falta de mão de obra e a necessidade de investir em projetos e iniciativas que permitam minimizar este grande problema”. Para os empresários, “há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.
Ou seja, na opinião da entidade, o pagamento de benefícios sociais tem produzido pessoas “inativas” que poderiam estar sendo envolvidas na cadeia produtiva do vinho, o que reduziria a necessidade de contratação de mão de obra de fora. “É tempo de trabalhar em projetos e iniciativas que permitam suprir de forma adequada a carência de mão de obra”, disse a nota.