Racismo não

Trabalhador gaúcho de vinícola diz que “apenas os baianos apanhavam”

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Trabalhador de vinícola passou a notar que o tratamento dado a ele e a outros gaúchos era diferente em relação aos baianos. "Eles apanhavam bastante. Qualquer coisa que estivesse errada, apanhava. Nós do Sul não apanhávamos"

Imagem: Polícia Federal-RS)

Hygino Vasconcellos, TAB

João* diz que presenciou ao menos quatro seguranças entrando de madrugada no quarto ao lado, na pousada onde dormia, em Bento Gonçalves (RS). Para quem estava no alojamento, os minutos seguintes foram atordoantes.

Horas antes, um dos ocupantes daquele quarto havia postado um vídeo numa rede social, denunciando as condições do uniforme que recebia diariamente para a colheita de uva, completamente encharcado. A peça de roupa precisava ser devolvida ao final do turno e, sem tempo para secar após a lavagem, acabava sendo entregue no dia seguinte ainda molhada.

A publicação acabou repercutindo e caiu na boca dos seguranças, que não demoraram para chegar no autor da postagem. De sua cama, João diz que acompanhou agoniado as agressões no quarto ao lado, ocupado só por baianos. “Escutei barulho de choque, de gritos, de pedidos de socorro, mas não tinha o que a gente pudesse fazer.”

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O grupo acabou conseguindo fugir e comunicar a situação à Polícia Rodoviária Federal (PRF) de Caxias do Sul (RS), para onde foram, dando início ao resgate dos trabalhadores em condições análogas à escravidão. Horas depois, João diz que se encontrou com um deles no ginásio para onde foram levados. “Ele estava bastante machucado, com os olhos inchados.”

João é gaúcho de Portão, cidade próxima a Porto Alegre. Chegou à Serra em 25 de janeiro, um dia depois de ver nas redes sociais uma oferta de emprego na colheita da uva. O salário: R$ 2.000 pelo mês trabalhado. “Achei que fosse um trabalho como qualquer outro.” Conta que, ao desembarcar da van com outras 30 pessoas, já encontrou trabalhadores baianos atuando no campo.

Ao longo dos dias, João passou a notar que o tratamento dado a ele — e a outros gaúchos — era diferente em relação aos baianos, relata. “Eles apanhavam bastante. Qualquer coisa que estivesse errada, apanhava. Nós do Sul não apanhávamos.”

Apesar disso, o dono da pousada não concedia vales para os gaúchos na forma de empréstimos superfaturados. Segundo João, apenas os baianos tinham acesso a isso: caso um trabalhador pedisse R$ 100, era preciso devolver R$ 150. “Ele dizia que, no passado, muitos gaúchos acabavam indo embora sem pagar”, conta, observando que muitos usavam o dinheiro para fugir de volta para casa. O TAB procurou o dono do alojamento, Fábio Daros, e aguarda retorno.

A rotina de trabalho era puxada, com carga horária acima do combinado, diz. “A gente saía para trabalhar às 5h e chegava na pousada às 20h. O combinado era um horário normal, das 7h às 18h, com uma hora de intervalo.”

Comida ao relento

Na hora do almoço, alguns trabalhadores acabavam não conseguindo fazer a refeição. De acordo com o relato de João, corroborado por outros trabalhadores, o prato de comida era entregue para o grupo ainda na madrugada e, enquanto trabalhavam nos parreirais, a comida ficava ao relento, sem refrigeração. Com isso, acabava estragando.

Com fome e sem alternativa, alguns acabavam engolindo a refeição azeda, inclusive João. Tanto no almoço quanto no jantar, o prato de comida era sempre o mesmo: arroz, feijão e frango. “Passei mal com a comida. Um dia a gente teve que parar de trabalhar, era diarreia e vômito. Um cara até foi parar no hospital.”

Para evitar a comida estragada, alguns trabalhadores recorriam a um mercadinho, que vendia produtos com o dobro do preço em relação à concorrência. Ali, eles só poderiam gastar R$ 400 por mês.

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No alojamento de três andares, dividido em duas casas diferentes, a precariedade prosseguia. Havia poucos banheiros, que só eram limpos uma vez na semana. “O banheiro era um barral”, conta ele à reportagem. Quem ficava em determinado andar só podia tomar banho nos chuveiros disponíveis naquele piso. O banho era com água gelada — a energia elétrica só foi ligada no momento da chegada dos policiais ao local, segundo João. As filas para usar o chuveiro eram enormes e alguns só conseguiam tomar banho depois da meia-noite — poucas horas depois, estariam de pé para começar a jornada, ainda na madrugada.

R$ 50 no bolso

No alojamento, os furtos eram recorrentes, diz. Quando João saiu de casa, levou consigo dois celulares simples. Quando ia para a colheita, deixava um deles escondido. Porém, três dias após chegar em Bento Gonçalves, não encontrou mais o aparelho ao voltar do trabalho.

Técnico de som, João estava desempregado havia dois anos. Saiu de casa rumo à lavoura com apenas R$ 50. “Se tivesse dinheiro, teria abandonado tudo. Pensei muitas vezes em pedir dinheiro para minha família [para poder fugir].”

Dois dias antes do resgate dos trabalhadores, João chegou a arrumar as coisas para ir embora, tamanha era a opressão. Porém, foi convencido pelo chefe a ficar mais uns dias. “Ele pediu para ficar até terminar a safra. Disse que muitos trabalhadores tinham ido embora e que estava sem pessoal.” Contrariado, decidiu permanecer.

No dia do resgate foi uma confusão de sentimentos. Sentiu alívio e medo ao mesmo tempo. “Nunca tinha passado por aquilo. Era trabalho na chuva, comida podre.”

No ginásio para onde foram levados, João diz que recebeu R$ 600 e, em 28 de fevereiro, mais R$ 4.000 (incluídas as verbas rescisórias) e agora aguarda também o valor do seguro-desemprego. “Eu achava que nem ia receber nada. Alguns gaúchos foram embora antes sem nada.”

Longa ficha corrida

Os trabalhadores resgatados foram contratados pela empresa terceirizada Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde Ltda., que integra o grupo Oliveira & Santana. A maioria deles atuava na colheita de uvas que eram levadas para três vinícolas: Salton, Garibaldi e Aurora. Outros terceirizados trabalhavam com avicultura.

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Em nota, o advogado da Fênix, Rafael Dorneles da Silva, disse que “os graves fatos relatados pela fiscalização do trabalho serão esclarecidos em tempo oportuno e no bojo do processo judicial”.

“Os colaboradores estão recebendo todo o auxílio necessário para que esta situação não traga maiores prejuízos aos mesmos.”

Em nota, a vinícola Aurora afirmou que repassava R$ 6.500 por mês por trabalhador terceirizado. Na nota de esclarecimento, afirma ainda que a contratação de terceirizados para colheita da uva se deve à escassez de mão de obra na região no período da safra, e que “não compactua com qualquer espécie de atividade considerada, legalmente, como análoga à escravidão”.

A empresa afirmou ainda que fornecia café da manhã, almoço e jantar aos prestadores de serviço durante o turno de trabalho.
Em nota oficial, a Salton — outra vinícola que contratou os serviços da Oliveira e Santana — diz lamentar os acontecimentos e repudia “qualquer ato de violação dos direitos humanos e trabalho sob condições precárias e análogas à escravidão”. A empresa admite que falhou em monitorar a situação na qual se encontravam os terceirizados.

“Reconhecemos que não averiguamos in loco as condições de moradia oferecidas por este prestador de serviço aos seus trabalhadores”, afirmou, em nota enviada ao TAB.

Já a Cooperativa Garibaldi informou que recebeu “com surpresa e indignação” as denúncias relacionadas à Oliveira e Santana, e que “repudia qualquer prática que afronte o respeito ao ser humano ou comprometa sua integridade”.

“A Cooperativa Vinícola Garibaldi encerrou o contrato de prestação de serviço e colocou-se integralmente à disposição das autoridades competentes para colaborar de todas as formas com as investigações”, disse a empresa.

*nome trocado a pedido do entrevistado.

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