Os Arquitetos do Medo
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Em 1963, a série de TV Quinta Dimensão (The Outer Limits) apresentou o episódio Os Arquitetos do Medo (The Architects of Fear), que trouxe uma premissa sobre um grupo de cientistas que decide forjar uma invasão alienígena, com o objetivo de criar um inimigo comum para a humanidade e evitar um holocausto nuclear.
Com a guerra fria, nasceu essa estratégia de nutrir de medo nos indivíduos. Os norte americanos colocaram em suas cidades o defcon, um dispositivo que aciona sirenes quando existe ameaça real de ações terroristas.
Por aqui, recente, o termo foi levemente alterado para gabinete do ódio.
Se nos países centrais o discurso dos perigos atômicos foram substituídos pelos discursos da ameaça terrorista, no mundo em que vivem as pessoas reais surgiu e foi crescendo um fenômeno que agora já parece epidêmico: o assassinato às instituições educacionais.
O movimento do medo começa sempre do topo das zonas de poder, mas desce rapidamente às espinhas dorsais humanas.
Não é fácil entender esse movimento que vem de cima e atinge os inocentes. Para compreender tais movimentos precisamos entender uma das características mais importantes do capitalismo tardio a que chamados de neoliberalismo.
Sua emergência fez declinar os sistemas de autoridade. No capitalismo anterior, as instituições fundamentais da estrutura social careciam de verticalidade e autoridade vigente. A família nuclear, com o pai como provedor, a instituição educacional, com o professor ensinando, o trabalho, com o cronometrista vigiando a produção, cada uma delas dependia de uma estrutura de autoridade funcional.
O neoliberalismo não precisa de nada disso. O indivíduo precisa de estímulo para empreender num mundo em que o trabalho vertical entrou em declínio rapidamente.
A ideologia que mais facilitou o declínio da autoridade foi o consumismo. Ele gera um movimento de desejo muito imperativo. A queda da autoridade familiar foi sentida muito lentamente, mas avançou sem recuar por toda a década de 1990, chegando nos anos 2000 com pais que se desdobravam para dar aos filhos o que não tiveram, considerando sempre os desejos consumistas, capitaneados pela vulgarização dos aparelhos celulares. Era a primeira célula em forma de bolha se expandindo.
Na sequencia, as escolas começaram a sentir os efeitos dessa bolha de empoderamento. Jovens que já não sentiam nessa instituição legitimidade para garantir um lugar no mundo do trabalho empurrados pelos desejos de consumo fácil.
Nessa mesma historicidade, as primeiras invasões em escolas ocorreram e Comunbine foi a mais expressiva. A busca da felicidade americana aliada a um impeto de violência, pode estar na base dos acontecimentos que resultaram na tragédia na Columbine High School em 1999.
Michael Moore foi o primeiro a desviar a questão para as armas. Seu documentário investiga a fascinação dos americanos pelas armas de fogo. Michael Moore, diretor e narrador do filme, questiona a origem dessa cultura bélica e busca respostas visitando pequenas cidades dos Estados Unidos, onde a maior parte dos moradores guarda uma arma em casa. Entre essas cidades está Littleton, no Colorado, onde fica o colégio Columbine. Lá os adolescentes Dylan Klebold e Eric Harris pegaram as armas dos pais e mataram 14 estudantes e um professor no refeitório. Michael Moore também faz uma visita ao ator Charlton Heston, presidente da Associação Americana do Rifle.
Acredito que tal interpretação sobre esses atentados criminosos cometidos por ex alunos devem ser observados por outra perspectiva, uma vez que as armas de fogo sempre estiveram ao alcance das mãos dos americanos, mas estudantes invadindo escolas e executando estudantes e professores é um fenômeno histórico muito recente.
A vacuidade das figuras de autoridade nos postos institucionais, por outro lado, foram acompanhadas por diversos movimentos de empoderamentos juridicamente autorizados ou não.
No caso específico brasileiro, o neoliberalismo surgiu sobre os despojos dos anos de chumbo do regime militar. A constituição cidadã oferecia novos estatutos de cidadania e abria ofertas como o ECA, estatuto da criança e do adolescente, a Lei dos Consumidores, e cada uma foi abrindo novas zonas de empoderamento durante os anos seguintes. Lei do Idoso, Lei Maria da Penha, Leis antirracistas, dispositivos legais anti-homofobia e assim por diante.
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A justiça desses dispositivos jurídicos não pode ser questionada, mas eles aconteceram nesse vazio de autoridade. E se o declínio das figuras de autoridade patriarcais promoveu um vácuo nas estruturas de poder, os empoderamentos, legais ou não, foram promovendo redes de pequenos tiranos sem outra referência do que a própria vacuidade do poder.
Os filhos, de qualquer idade, assumiram esse espaço no bojo das famílias de classe média e submeteram os pais a um regime novo de autoridade incontrolável. Os alunos, nas instituições escolares, assumiram os mesmo espaços sem que houvessem recursos institucionais senão a licenciosidade com que a educação passou a ser tratada, com declínio proporcional da eficiência educacional. O analfabetismo funcional cresceu na mesma proporção.
O mundo do trabalho, que já não precisa mais das velhas formações obedientes, facultou as frentes criativas e produtivas para todos aqueles que ofereceram mão de obra barata, proletarização de profissões tradicionais, saturação de mão de obra sem eira nem beira, pois os protocolos e rotinas nesses novos contextos facilitam a produtividade.
Foi um movimento emergente esse do declínio dos postos de autoridade e da ocupação generalizada dos pequenos tiranos. Ninguém mais do que eu apreciou a queda da autoridade patriarcal nas sociedades que emergiram no raiar do século XXI. Mas a simples queda não teve força de produzir nada além de violência.
O exemplo da crescente epidemia de ataques às instituições escolares que só no último mês aterrorizou o país, precisa ser entendido segundo essa perspectiva do acesso livre ao poder como autorização para a violência, pois para isso serve o poder, produtor de violência.
Segundo os velhos protocolos patriarcais, o bulling sempre aconteceu nas escolas e de certa forma era ignorado quando alguém reclamava. Diretores, professores e pais afirmavam que essa agressão, não muito diversa das hierarquias oficiais escolares, reforçava o caráter e que o aluno deveria mesmo aprender a lidar com elas, pois a vida precisava de pessoas preparadas em muitos níveis.
A breve história dos ataques à instituição escolar que se iniciou em 1989 e de lá pra cá só aumentou em número e virulência, todos os assassinos que deixaram alguma mensagem das motivações para os crimes apontavam o bulling como causa da vingança, mesmo que não fosse contra os indivíduos que os agrediram, mas era contra a instituição, como se os agressores estivessem revivendo nos corpos dos novos estudantes.
O vácuo de poder a que me referi produziu isso. O acesso a armas sempre foi fácil em países como o Brasil. Os pequenos tiranos, de qualquer idade, não aceitam mais as ofensas que ainda há pouco na história educacional eram aceitáveis pelos gestores. Querem vingança, pois sentem a energia do poder soberano inflando seus pulmões reivindicatórios. São justicialistas nesse novo tempo em que a justiça parece estar ao alcance das ruas, ao voluntarismo dos pequenos tiranos.
Não subestimem esse movimento, pois ele tende a crescer em número de ocorrências e em morticínio.
Teria sido urgente que ao declínio da autoridade tivesse emergido o respeito e o afeto, desde o lar até a escola. Mas no lar, os pais precisavam dobrar os tempos de trabalho para darem aos filhos as novas exigências. Nas escolas, os professores precisavam pedir às famílias que cuidassem da educação, pois a escola existia para ensinar, não para educar.
O trabalho, bom, o trabalho dá a dignidade por preço módico, já que o desemprego é a vergonha do fracasso.
Os gabinetes do ódio existem para acusar os iguais pelas maldades do mundo, enquanto os arquitetos do medo queimam nas fogueiras da desigualdade os incensos para os tempos que ainda virão.
A guerra civil está aqui desde os primórdios da emergência neoliberal. As escalas de assassinatos só crescem. Hoje estamos na ordem de 75 mil mortos por ano por tiro, sem que nenhum declínio tenha sido acusado. Mas esses mortos não nos interessam muito. Pois bem, agora são nossos mortos que estamos sentindo. Quando mandamos nossos filhos para as escolas e as devassas dos pequenos assassinos interrompem nossas vidas, pois a morte de um filho é a morte de uma família também.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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