Por que o Novo Ensino Médio é tão ruim?
A começar pela sigla (NEM), o Novo Ensino Médio é uma sucessão de equívocos. As razões desse juízo estão expostas nos 10 tópicos a seguir:
Lucio Massafferri Salles* (Pragmatismo Político)
por Dr. Edgar Lyra (artigo publicado na ANPOF)
A começar pela sigla (NEM), o Novo Ensino Médio é uma sucessão de equívocos. As razões desse juízo estão expostas nos 10 tópicos a seguir:
1. O Ensino Médio anterior era de fato sofrível. Mas não exatamente por suas 13 “engessadas disciplinas”. Era ruim porque seus professores eram e continuam mal pagos, especialmente no setor público; porque não têm prestígio social nem tempo para preparar aulas ou se aperfeiçoar profissionalmente. Era ruim porque as instalações das escolas eram precárias e continuam sendo, em vários sentidos: logísticos, pedagógicos, afetivos. Os alunos tinham e seguem tendo dificuldades de acesso e permanência no ambiente escolar. Faltam-lhes condições materiais e sociais adequadas aos estudos. Resta saber por que motivo, com tantos passivos gravíssimos, entendeu certa “elite empresarial-pedagógica” de promover uma reforma curricular vendida com ares de proselitismo. Quem não se lembra da propaganda veiculada no segundo ano do governo Temer, em que alunos bem maquiados apareciam em luzes de ribalta, animadíssimos, dizendo, entre outras inverdades, que doravante “poderiam escolher”?
2. A reforma que deu origem ao NEM veio à luz após o impedimento da presidenta Dilma Rousseff. Havia antes disso um projeto do deputado Reginaldo Lopes que propunha acabar com as 13 antigas disciplinas e acenava com alternativas curriculares. Não foi à frente porque, de alguma forma, se intuía as dificuldades que sua aprovação e implementação trariam. O interesse empresarial pressionou como pôde por uma reforma com espírito semelhante, mas somente após o golpe parlamentar teve real controle da pauta. A MP 746/2016 foi um dos primeiros atos do novo governo. Rapidamente transformou-se na Lei 13415/2017 que, dentre outras coisas, revogou a obrigatoriedade de disciplinas como Filosofia e Sociologia, aumentou a carga horária do segmento e instituiu os chamados percursos formativos. Por sabido, não houve esforço por políticas públicas que atacassem os gravíssimos passivos listados acima. Pelo contrário, foi estabelecido um teto de gastos (EC 95/2016) que limitava também os investimentos em educação.
3. Michel Temer governaria pouco mais de dois anos em clima nada ameno, especialmente junto ao pessoal da Educação. “Primeiramente, fora Temer” – assim se apresentavam muitos educadores. A prudência aconselhava evitar reformas complexas em tempos de turbulência política e chances duvidosas de continuidade. Só que não. Sem as resistências do governo destituído, era hora, como se passou a dizer em tempos recentes, de “passar a boiada”. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em elaboração, teve que ser modificada na esteira da Lei 13415. E isso se fez sem conversa com as partes envolvidas. Não havia nem clima, nem interesse. Tão falaciosa quanto a propaganda que botava na boca dos estudantes júbilo por uma reforma que mal conheciam, era a tentativa de legitimar a BNCC pela referência à consulta pública realizada pelo governo anterior, com suas “12 milhões de contribuições” – como se a consulta que tinha por objeto a primeira versão da BNCC autorizasse sua arbitrária transformação posterior.
4. A versão finalmente dada a público foi uma espécie de Frankenstein, só aprovada pelo Conselho Nacional de Educação, sem unanimidade, em dezembro de 2018, em grande parte por receio do que podia acontecer se a decisão fosse deixada para o novo governo. Como tudo sempre pode piorar, a gestão seguinte teve três ministros alheios ao problema, além de uma pandemia que manteve os estudantes afastados dos colégios por quase dois anos. Ainda assim, com atrasos, percalços e incongruências, seguiram os educadores-empresários tocando o barco nos estados e desconsiderando qualquer diálogo mais substancial com a multiplicidade das partes concernidas.
5. Resumidamente, a BNCC do Ensino Médio priorizou o ensino da Língua Portuguesa e da Matemática, e empurrou as Ciências da Natureza, junto com as Ciências Humanas e Sociais, para uma interdisciplinaridade que beira o assédio. Cabe aos professores se virarem para obedecer ao novo ditame, sem qualquer formação e auxílio para a construção de um efetivo diálogo entre as antigas disciplinas ou observação da “formação integral” que perpassa retoricamente o documento.
6. Flexibilização é a palavra de ordem da nova legislação. O estímulo ao rompimento com a antiga ordem disciplinar – com a introdução curricular de oficinas, laboratórios, seminários, workshops e outras formidáveis soluções – não prevê apoio logístico ou econômico à altura. Houve, na verdade, uma tentativa de juntar ao pacote final do governo Temer uma Base Nacional de Formação de Professores, sem ficar muito claro com que recursos ou boa vontade, visto que produzida a portas fechadas, ela seria implementada. É preciso perguntar: – Acaso são desconhecidas as dificuldades com que se defrontam historicamente gestores escolares e professores da rede pública para organizarem suas grades curriculares e levarem seus anos letivos a termo? – Por que imaginar que os estados conseguiriam curricularizar ordeiramente tão ousada reforma, sem recursos e em tempos tão tortuosos? – Ou será que a reforma tinha em vista primeiramente as escolas mais abastadas, ou foco que não exatamente uma educação pública de qualidade?
7. Previsivelmente, a mistura desse caldo político-epidemiológico com o descuidado advento dos percursos formativos gerou um verdadeiro caos, que, agora, no segundo ano de implementação da reforma, vai inexoravelmente se pondo a nu e gerando protestos vindos de alunos, famílias, professores, gestores e pesquisadores universitários. Verdade seja dita, ainda tentaram corrigir os perigos da inábil flexibilização com a publicação, ao apagar das luzes do governo Temer, da pouquíssimo conhecida e confusa Portaria 1432/2018. Ilustra bem o resultado desse conjunto de desatinos a conta feita pela Folha de São Paulo, em reportagem de 17/03/2023: mais de 1500 disciplinas de Ensino Médio se espalham hoje pelo país.
8. “Brigadeiro caseiro”, “O que rola na rede”, “Marketing digital”, “Projeto de vida” estão entre os componentes do Novo Ensino Médio. Seriam quem sabe defensáveis se houvesse instalações e professores preparados para ministrá-los, sobretudo sem prejuízo de uma formação sólida e cidadã, minimamente adequada aos desafios do século 21. Por certo não há problema em flexibilizar currículos e inserir saberes cotidianos ou profissionalizantes nas escolas, desde que isso seja feito de forma prudente, democrática e bem planejada, com um mínimo de compromisso e conhecimento das realidades brasileiras, bem entendido, não como reprodução pedante e oportunista de modelos hauridos não se sabe bem onde. Não fosse bastante grande o equívoco, como nem o ensino da Matemática, nem o da Língua Portuguesa foram mais essencialmente reformados em suas concepções e metodologias, os gestores públicos têm tido dificuldades com as cargas horárias dilatadas desses componentes, que continuam sendo percebidos pelos estudantes como “chatos” e “sem sentido”.
9. O ENEM é outro nó trazido pela reforma. Pela nova legislação, a “parte comum” do currículo tem no máximo 1800 horas. Cinco anos após a aprovação da Lei 13415, ainda há quem pergunte se o exame nacional avaliará somente essa parte comum. Não é o que dizem as modificações introduzidas nas DCNEM pela Resolução MEC/CNE/CEB n° 3, de 21/11/2018. Enfim: – Como será possível avaliar percursos formativos de tal modo diversificados, mesmo “explodidos”? Mesmo em relação à parte comum: – Que tipo de cobrança será feita às áreas de Ciências da Natureza e Ciências Humanas e Sociais, na sua induzida interdisciplinaridade? A história leva a crer que reeditaremos o indesejado fenômeno do “currículo reverso”, com escolas e redes se organizando em função do que efetivamente for cobrado no Exame Nacional do Ensino Médio. Logisticamente atroz, esse talvez seja, contudo, o menor dos problemas. Muito pior é o desnorteamento que tudo isso vem causando nas nossas já muito açoitadas juventudes. Tudo pesado, o NEM não aumentará o interesse pela escola, não impulsionará nenhuma formação técnica qualificada, não formará, desgraçadamente, sequer mão-de-obra barata.
10. Gente que se dizia asfixiada com as antigas 13 disciplinas ou que, por qualquer motivo, lutou por essa famigerada reforma, segue argumentando que é preciso aprimorá-la, que será pior a esta altura revogá-la. Dependendo de como se olhe, a questão se revela retórica. De fato, a suspensão das atuais diretrizes precisa prever alguma solução de continuidade, por temporária que seja. O que concretamente se põe em questão é, enfim, a extensão ou radicalidade das transformações a promover, por óbvio, junto com ações de legitimação do processo de reconstrução. O atual MEC instituiu através da Portaria 399/2023 uma Consulta Pública para discutir, inicialmente por 90 dias, a reforma do Ensino Médio. A primeira providência a tomar é decerto a extinção de quaisquer privilégios nas definições de pauta. Sem uma estruturação republicana e representativa dessa consulta, o novo governo reproduzirá, lamentavelmente, um passado que deveria querer a todo custo deixar para trás. Pior, aumentará as desigualdades entre suas juventudes e agravará problemas sociais que em outros ministérios vêm conhecendo mitigações notáveis. Fato é que, sem essa consideração, qualquer revisão da reforma será ruim independentemente do seu resultado, isto é, pelos mesmos motivos processuais que tornaram ilegítima a reforma original, agora percebida por gregos e troianos como equivocada. Se há algo de cristalino nesse imbróglio todo é a necessidade das partes afetadas pelas decisões se sentirem honestamente concernidas, mesmo que isso tome algum tempo. Não vamos a lugar nenhum sem esse cuidado – nem agora, nem nunca.
Leia aqui todos os artigos de Lucio Massafferri Salles
O golpe neoliberal e a escalada do caos na Educação
* Edgar Lyra é Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC – Rio) e colaborador do Mestrado Profissional de Filosofia em Ensino do CEFET/RJ. Entre 2015 e 2016, atuou como assessor das duas primeiras versões do documento de Ciências Humanas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Link para o artigo de Edgar Lyra, na coluna da ANPOF: https://www.anpof.org/comunicacoes/coluna-anpof/por-que-o-novo-ensino-medio-e-tao-ruim
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*Lucio Massafferri Salles é filósofo, psicólogo e jornalista. Doutor e mestre em filosofia pela UFRJ, especialista em psicanálise pela USU. Criador do Portal Fio do Tempo (YouTube).
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