História

William Blake, místico, polímata, quadrinista iluminado

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

Vejo educadores diversos discordando de que o termo aluno tem origem no iluminismo, como aquele que desprovido de luz própria precisa do auxílio do professor, aquele que ensina.

Argumentam que aluno é um termo que vem de pedagogia, aquele que deve ser conduzido pela mão de um tutor.

Eu não vejo diferenças significativas aí, e para provar, quero retomar a emergência do Iluminismo.

Foi uma ideologia bastante difusa, pois ocorreu em vários lugares quase ao mesmo tempo.

O Iluminismo se iniciou como um movimento cultural europeu do século XVII e XVIII que buscava gerar mudanças políticas, econômicas e sociais na sociedade da época. Para isso, os iluministas acreditavam na disseminação do conhecimento, como forma de enaltecer a razão em detrimento do pensamento religioso.

Também conhecido como Século das Luzes e Ilustração, foi um movimento intelectual e filosófico que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII, “O Século da Filosofia”.

O grande símbolo de sua emergência foi a realização da Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, uma das primeiras enciclopédias que alguma vez existiram, tendo sido publicada na França no século XVIII. Os últimos volumes foram publicados em 1772.

Esta grande obra, compreendendo 35 volumes, 71.818 artigos e 2.885 ilustrações, foi editada por Jean Le Rond D’Alembert e Denis Diderot. D’Alembert deixou o projeto antes do seu término, sendo os últimos volumes a obra de Diderot. Muitas das mais notáveis figuras do Iluminismo francês contribuíram para a obra, incluindo Voltaire, Rousseau e Montesquieu.

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De acordo com Denis Diderot no artigo “Encyclopédie”, o objetivo da obra era “mudar a maneira como as pessoas pensam”. Ele e os outros contribuidores defendiam a secularização da aprendizagem, à distância dos jesuítas. Diderot queria incorporar todo o conhecimento do mundo para a obra, e esperava que o texto pudesse disseminar todas as informações para as gerações atuais e futuras.

Foi uma das primeiras transformações dos saberes das gentes em conhecimento. Tudo que puderam recolher dos fazeres livres acabaram por serem incorporados nos verbetes da enciclopédia, de tal sorte que aqueles que haviam recebido por tradição seus saberes agora seriam despojados desses saberes, pois o conhecimento deveria ser ensinado por alguém especial, o professor, o cientista, aquele que detinha um novo poder não mais vulgarizado.

Essa foi a base da educação formal, o princípio da ciência, a mudança de mãos do taipeiro que fazia a casa por herança tradicional para o engenheiro e o arquiteto, que haviam aprendido com ele e agora o despojava do seu fazer.

O Iluminismo se alinhava aos projetos centralizadores que haviam começado no Humanismo, que colocou o homem no topo da cadeia alimentar diante da natureza e o autorizou a experimentar nela da forma que melhor lhe aprouvesse.

Tudo que concebemos hoje como conhecimento, todas as verdades universais que ancoravam o mundo da colonização e exportadas para toda a terra foi originada ali, no grande esforço para reunir num mesmo conjunto de informações as bases do conhecimento a ser divulgado no processo do império cognitivo.

O poder deixava de lado as investiduras religiosas e passava a ser acessível aos representantes institucionais iluministas, como a educação, a medicina, as artes construtivas, as engenharias, as estratégias militares e assim por diante.

Quando olhamos para esse passado inscrito nos livros escolares, tendemos a ver tamanha transformação como expressão do positivismo, ou seja, de uma história que caminha para a igualdade, daí todos os discursos ideológicos que se alinharam, como o evolucionismo darwinista, o liberalismo econômico, o marxismo do motor da história, os fundamentos freudianos do ego.

Essa ideologia foi poderosa também em sua época e rapidamente se hegemonizou, contagiando inúmeros estudiosos, pensadores, filósofos.

Mas um homem se colocou contra tamanha heresia: William Blake.

William Blake (1757-1827) foi um poeta, tipógrafo e pintor inglês, cuja pintura fantástica o colocou para muitos como um místico.

Blake viveu num período significativo da história, marcado pelo Iluminismo e pela Revolução Industrial na Inglaterra. A literatura estava no auge do que se pode chamar de clássico “augustano”, uma espécie de paraíso para os conformados às convenções sociais, mas não para Blake que, nesse sentido era romântico, “enxergava o que muitos se negavam a ver: a pobreza, a injustiça social, a negatividade do poder da Igreja Anglicana e do estado”, mas também do chamado progresso, da evolução, da educação formal que ganhava força.

Seus pais recusaram matricular o jovem Blake e o inscreveram na escola de desenho Strand de Paris. Ali se tornou aprendiz do estampador James Basire. Na sequência, frequentou a Academia Real de Londres, sempre confrontando seus professores.

Sua arte de ilustração e de tipógrafo o moveu para obras como a Divina Comédia, “Newton” de Blake (1795) demonstra sua oposição à “visão única” do materialismo científico: Newton fixa o olho em um compasso (lembrando Provérbios 8:27, uma passagem importante para Milton) para escrever sobre um rolo que parece projetar de sua própria cabeça.

Mas a obra que mais confronta os princípios iluministas serão seus Livros Iluminados.

Tenho em mãos aqui a bela edição da Thames & Hudson completa, dos livros. Quero transformar essa obra em história em quadrinhos, numa degradação que tenho clareza que deveria alegrar o pensamento divergente e inconformista de Blake.

Os Livros Iluminados contendo sete poemas originalmente gravados impressos iluminados e publicados por William Blake entre 1788 e 1795: ”Todas as Religiões são Uma Só”; “Não Há Religião Natural’; “O Livro de Thel”, “América: Uma Profecia”; “Europa: Uma Profecia”; “A Canção de Los”, “O Livro de Los”, “Os sons da inocência e da experiência”, “O casamento do céu e do inferno”, “Os portões do paraíso”, “Visões das filhas de Albion”, “O primeiro livro de Urizen”, “O livro de Ahania”, “Milton, um poema”, “Jerusalém, a emanação do Gigante Albion”, “O fantasma de Abel”, “Na poesia de Homero e de Virgílio” e “Laocoon”.

William Blake tece, por toda a sua obra, ácidas críticas ao pensamento filosófico de matriz iluminista, em voga entre as classes letradas da Inglaterra do século XVIII, e contra a frequente associação do corpo a um invólucro impuro para alma imortal, leitura comum nas religiões de tradição cristã. Para o artista, a experiência do corpo, apresentado alternadamente como espiritual e material, representa a única via de acesso ao divino.

A razão era a moeda de ouro do século XVIII Inglês, um trunfo sobre o qual se concebia que a sociedade devia ser fundamentada. Pelo exercício da razão, as paixões, os instintos e o corpo, compreendidos geralmente como baixos, impuros e transitórios, deveriam ser domesticados em nome de um projeto útil.

Blake responde a isso em sua arte; na obra do autor, a experiência do corpo revela-se como uma das fontes de construção do conhecimento, o que, como muitas dicotomias exploradas pelo artista, apresenta-se alternadamente como espiritual e material. De fato, o pensamento de Blake sobre o corpo opera como uma espécie de princípio fundamental que permeia seus esforços imaginativos em relação à sua herança intelectual e à construção de sua visão de mundo. A noção de “visão” é fundamental para a compreensão da obra de Blake, isto porque, para o artista, a própria arte, que representa o caráter redentório do homem, está calcada no ato visionário (O corpo como acesso ao divino na arte iluminada de William Blake, Andrio J. R. dos Santos).

O corpo é o indício dos habitáculos que aproximam os livros iluminados das histórias em quadrinhos. Nos dois casos são desproporcionais. Não buscam pela mimese, mas pela hipersaturação muscular, da mesma forma que nos anos 1990 os artistas inflaram os corpos dos personagens.

Massaveio (ou Massaveismo) é um termo dos anos 90 para descrever aquelas poses de heróis que exibiam músculos irreais e desproporcionais além de armas gigantescas.

Na gravura Elohim Creating Adam (1795) as concepções de Blake sobre o corpo humano representa uma afirmativa visual acerca da criação do corpo, assim como a respeito das idiossincrasias gráficas de Blake. De fato, o estilo de Blake, sublime, tende a maximizar e a magnificar imagens até o ponto em que pareçam distorcidas e anatomicamente incorretas. A gravura é uma imposição de força no ato de Elohim.

Estamos na fronteira criativa afastada dos princípios longevos do Iluminismo, que ainda hoje nutrem os pensamentos das proporções áureas e tão palatáveis.

Os heróis massaveios rompem com as elegantes composturas dos heróis de histórias em quadrinhos:

A seguir, Blake antecipa o confronto com o Iluminismo em termos estéticos agressivos e ao mesmo tempo primais:

 

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Se até então os artistas remeteram ao ideal clássico suas criações, com Blake as imagens buscam a grandiosidade perigosa da divindade. E nenhuma razão pode suportar a presença de Deus tão próximo.

Mas se estilisticamente esses dois momentos nos convidam à reflexão de que, quanto mais nos afastamos dos princípios da razão iluminista mais nos envolvemos nos mistérios mais primitivos das tempestades, também devemos considerar que a forma elaborada por Blake para imprimir seus livros iluminados também muito se aproxima da forma em que os quadrinhos estão sendo apresentados.

Nos dois casos as desproporções levam a sensação de que os corpos estão inflados e que podem romper a qualquer instante, explodindo carne e sangue por todo canto.

Vamos aos livros iluminados de Blake para essa consideração. A relação que distancia os princípios iluministas dos livros iluminados de Blake, de certa forma, se repetiu nos incômodos que os quadrinhos massaveios dos anos 1990 imprimiram no gosto dos leitores habituais.

Mas isso não implicou que na jornada do massaveismo os corpos passaram a buscar essa exibição de magnificência muscular.

Mas se o conteúdo dos livros iluminados de Blake traziam não só os corpos moldáveis representando primitivas disposições de barro e veias e músculos, a forma de sua produção e reprodução carece de ser entendida e anotada.

O trabalho gráfico explorado por Blake vinha de uma tradição muito anterior aos modelos reprodutivos trazidos pelo Iluminismo.

Assombrado por visões de anjos, demônios e fantasmas em sua infância, o misticismo serviu ao gravador treinado ao longo de sua vida como inspiração para sua carreira artística e poética. Após discutir com o Presidente da Real Academia de Artes, ele mesmo fundou uma gráfica e publicou suas obras, juntamente com sua esposa Catherine, inventando uma técnica especial de impressão, a gravura em relevo. Típico para Blake era a combinação de imagem e escrita do romance.

Também pela visualização das suas visões nas suas obras, tão diferentes da arte contemporânea, Blake era considerado pelos seus semelhantes como uma pessoa louca, mas invulgarmente feliz, que defendia a igualdade entre os sexos, as raças e as classes. Essas visões, que eram perigosas na política da época, foram particularmente influenciadas por uma interpretação liberal da Bíblia, ao contrário da Igreja, e das ideias e ideais da Revolução Francesa, e estavam muito à frente de seu tempo. Em seus quadros, Blake usava frequentemente motivos religiosos, como a Queda do Homem em Satã Exultante sobre Eva e A Tentação e Queda de Eva. William Blake morreu em 1827 em grande parte despercebido e sem dinheiro, mas é hoje considerado um artista importante cujos trabalhos ainda influenciam a cultura pop.

Por se tratar de um processo de gravura em relevo, a illuminated printing difere substancialmente do processo convencional da gravura a água-forte, no qual as linhas, formas ou áreas que se deseja imprimir estão sulcadas na matriz. Para Blake, a “impressão iluminada” representava um processo mais eficiente e expressivo do que o processo a entalhe e o termo “illuminated” estava relacionado aos manuscritos iluminados medievais, que inspiraram o autor em suas composições integrando imagens e palavras.

Para gravar as matrizes era necessário escrever e desenhar diretamente sobre as chapas de metal, considerando a inversão da imagem e utilizando um verniz cuja fórmula conciliava duas características: fluidez para ser aplicado com bico de pena ou pincel, de forma livre e responsiva aos movimentos das mãos do artista, e resistência ao mordente, isto é, ao ácido ou solução ácida de ação corrosiva sobre a superfície não desenhada das chapas metálicas, a qual faz surgir em relevo o que foi escrito ou desenhado a verniz.

Além disso, seu processo de gravura envolvia mais de uma mordida, isto é, a chapa de metal era submetida a mais de um banho de mordente, de forma gradual, com aplicação de verniz entre um banho e outro para proteger os detalhes mais delicados e vulneráveis à ação corrosiva do mordente. O rebaixamento de parte da superfície da chapa, produzido no processo de gravação, era raso, o que tornava o processo de entintagem e impressão bastante trabalhoso e influenciava o ritmo de produção das estampas, as quais podiam ser impressas a cores ou coloridas a mão.

Em relação ao modo de produção de um livro ilustrado no século XVIII, a invenção deste processo deu a William Blake autonomia para imprimir livros ilustrados em sua própria prensa, tornando-se responsável pela produção das obras, independente da colaboração de impressores especializados nos processos em relevo e a entalhe, e livre de restrições ou imposições comerciais.

A água-forte em relevo (relief etching) teve grande importância para Blake por permitir-lhe manter unidas a invenção e a produção, além de unificar a relação entre o poeta, o pintor e o gravador. Michael Phillips, autor do artigo “Printing in the infernal method: William Blake’s method of ‘Illuminated Printing”‘, propõe que esta técnica de gravura em relevo estaria imbuída de um significado metafórico na poética de William Blake. A ação corrosiva do ácido sobre a chapa metálica teria um efeito salutar porque, ao dissipar superfícies de ilusão e aparência, poderia revelar a poesia e o desenho nela contidos, assim como o infinito que estava oculto, e purificar a percepção do homem, levando-o a despertar o divino dentro de si e a reconquistar o paraíso interior.

O iluminismo consolidou um modo de ver o mundo e de vida completamente heteronômico. O resgate dos iluminados reafirma que a autonomia é a própria expressão da liberdade, em que as escolhas de viver uma vida boa nutrida pela criatividade e pela imaginação, mas também pelos desvios dos códigos impositivos do poder.

Encontramos aqui as imbricações entre forma e conteúdo, entre o interior e o exterior, entre os contextos e as rotinas, numa ruptura com as crescentes proporções heteronômicas furtivas do Iluminismo encaradas diretamente com uma autonomia completa, inclusive e principalmente técnica e criativa.

Aproximar-se do divino que vivia dentro de si parecia ser o jeito de confrontar as limitações que a visão de mundo iluminista estava impondo ao mundo.

As possibilidades de leitura que a obra trazia tornava o conteúdo um fluxo de sentimento muito distante do racionalismo requerido pelo período crescentemente industrial e desumano.

As histórias em quadrinhos produzidas 200 anos depois tinham amadurecidos códigos de deuses que se comportavam de modo a resgatar as divindades anti prometeicas de Blake.

Grant Morrison escreveu o livro Superdeuses, em que os heróis de papel são apresentados como arquétipos cujos arcos de histórias abrangem décadas e preveem o curso da existência humana; expressando uma tentativa de narrar não só nossa própria história, mas a história da civilização.

Mas se grande parte dessa história das histórias em quadrinhos resguarda alguns dos valores iluministas mais autênticos, os anos 1990 em que emergiu o massaveismo, sombras junguianas emergiram os corpos dos heróis num mar de lama primordial, nublando inclusive os valores defendidos até aquele momento da história da arte.
Os corpos iluminados pelo fogo divino distorcem nossa percepção com um desconforto irracional e William Blake ressurge com suas flâmulas gravadas em fogo a riscar a têmpera das gravuras primordiais.

Por aqui, temos o escatológico Marcatti, que há anos produz seus quadrinhos de forma totalmente independente, usando uma impressora offset Multilith 1250 de 300 kg, distribuindo seus 32 títulos de quadrinhos absolutamente marginais sem nenhum pudor. Felizmente, o espírito rebelde de Blake continua vivo naqueles que vivem a autonomia como uma expressão de liberdade risonha, mesclada por tinta, suor e suco gástrico.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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