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ATMOSFERA ZERO: PONTA DO ICEBERG CRIATIVO E APOTEOSE EM JIM STERANKO

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político</span

O enfant terrible dos quadrinhos americanos, Jim Steranko, já havia consolidado sua exuberante e rápida trajetória nos quadrinhos nos anos 1960 com Nick Fury.
Marcando sua criação com uma mistura de surrealismo e pop art, se debruçou sobre páginas duplas desconcertantes.
Nos anos 1970 era comum que filmes de sucesso tivessem seu equivalente em quadrinizações. Outland, comando titânico foi desses filmes. Lançado em 1981, a tarefa de quadrinizar o filme coube a Steranko.
E sua arte se eternizou como magia nessa obra.
Larry Hama, em uma introdução à coleção de Nick Fury, disse que Steranko “combinou o dinamismo figurativo de Jack Kirby com conceitos de design moderno” e reformulou Fury de ternos e gravatas para “um macacão justo com vários zíperes e bolsos, como um traje espacial de Wally Wood reformado por Pierre Cardin. As mulheres estavam vestidas com couro preto justo à la Emma Peel no programa de TV dos Vingadores. As influências gráficas de Peter Max, Op Art (arte ótica) e Andy Warhol foram incorporadas ao design das páginas – e as páginas foram projetadas como um todo, não apenas como uma série de painéis. Tudo isso, executado em um estilo nítido e rígido, fervilhando de drama e tensão anatômica”.
Neal Adams, enquanto trabalhava para a rival DC Comics, incluiu um painel em uma história de Deadman em que plumas alongadas de névoa soletravam sub-repticiamente as palavras “HEY A JIM STERANKO EFFECT”.
Em Strange Tales # 167 (janeiro de 1968), Steranko criou a primeira página em quadrinhos de quatro páginas, sobre a qual ele ou o editor Lee notaram bombasticamente, “para obter o efeito total, é claro, requer um segundo número colocados lado a lado, mas achamos que valerá a pena o preço para ter a cena de ação mais louca de todos os tempos na história dos quadrinhos!”, enredos cheios de intrigas, sensualidade mal sublimada e uma modernidade hi-fi cool-jazz.
O filme não tem nada de mais, mas a obra em quadrinhos é impressionante.
Realizada com todos os maneirismos de Steranko, o resultado são paginas duplas com um nível de detalhamento que por vezes é necessário uma lupa para acompanhar suas linhas difusas. Ele rege o olhar do leitor como um maestro com sua pena. Embora tenha sim um caminho de leitura, nosso olhar se perde de tanto voltar para encarar de novo aquela cena cujo movimento já não parece estático, mas vivo e vibrando sem parar.
Uma das mais interessantes histórias em quadrinhos já feitas, Atmosfera zero revela uma estrutura completamente funcional para o efeito que seu criador desejava. Um exemplo da narrativa espetacular que constrói é o das estruturas das páginas. Grandes painéis de páginas duplas com ações em simultâneas expressões e na parte mais baixa da página os diálogos em quadros sequenciais. Suportes narrativos emolduram essa dinâmica.

Um de seus comentadores:
“Steranko aborda a adaptação para os quadrinhos reconstruindo o roteiro de acordo com as características do novo meio, quase sem pedágios. Ele usa referências fotográficas, seria preciso mais, tanto para manter as semelhanças (principalmente a do protagonista) quanto para aproveitar os cenários, mas a narrativa é cem por cento dele. Assumir riscos. A principal: distribuir a ação em blocos de duas páginas ou splash-pages duplas, no uso de Cody Sturbuck de Howard Chaykin, presidida por uma grande vinheta em torno da qual se orquestram as demais. A opção mais comum distribui o espaço entre um enorme painel superior que cobre as duas pranchas, onde a profundidade de campo é cuidadosamente trabalhada, e um aglomerado de cartuns, entre dois e cinco, de aproximadamente um quarto da página, na margem. mais baixo, onde se concentra o diálogo e que recorre ao primeiro plano ou plano médio. Mas nem sempre é assim: às vezes uma grande figura emoldura as pinturas, como no tiroteio no refeitório nas páginas 42-43, ou o clímax de uma batalha se fragmenta em estreitas tiras verticais como nas páginas 46-47”.

Essa obra influenciou diretamente o Sin City de Frank Miller. A potência do preto sobressaindo inclusive de suas cores chapadas é algo que não passa sem sedução a olhares profissionais.

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A obra está fora de catálogo em todo o mundo há muito tempo e essa ausência é realmente estranha, dado a atualidade e a importância de Steranko, homem de muitos talentos, quadrinista, mágico, ladrão, diretor de arte, escritor dentre outros. Um polímata.
O lugar de Atmosfera zero na história dos quadrinhos está definitivamente garantido.
A história, todavia, é sempre reformada. O próprio Steranko escreveu, entre 1970 e 1972, sua História dos Comics que, dos sete volumes prometidos só dois vieram à luz.
Nesse quesito, é a história do gosto que deveríamos problematizar. Os cânones ocupam um lugar sagrado e sempre repetido e sobre ele chafurdam os senhores da indústria. Orientando o gosto do leitor.
Um exemplo desse movimento, que envolve muitos campos, é o caso brasileiro. Nem preciso mencionar o revisionismo de obras do passado que estão sofrendo alterações baseadas numa moralidade atualizada.
Sou de um tempo em que a grande diversidade de ofertas de quadrinhos europeus e americanos conviviam em livrarias em que editoras portuguesas como a Meribérica faziam chegar por aqui Neuromante, de Tom de Haven e Brace Jensen, Os passageiros do vento, de Bourgeon, O mercenário, de Vicente Segrelles, ou as obras lançadas por editoras espanholas, como Atmosfera zero, entre outras.
Embora esse fosse um tempo anterior ao neoliberalismo, ou seja, de certas restrições de importação, no caso aqui não lembro de que tais restrições tivessem ocorrido.
Os anos 90 abriram as fronteiras para a globalização e o setor dos quadrinhos viu chegar a poderosa Panini, territorializando a produção de quadrinhos e impedindo a chegada por aqui de editoras portuguesas. Essas editoras, Edições 70, Futura, Asa e Meribérica, eram a porta de entrada por aqui da produção europeia. Então a definição do gosto foi sendo tecida pela oferta volumosa de quadrinhos de super heróis norte americanos e considerando que a Itália, país de origem da Panini, também assimilou a produção americana, a preferência se transformou no próprio mercado editorial.
Outra onda mercadológica são os mangás que também definem o gosto do leitor com sua imagem de diversidade temática sob o mesmo traço.
As editoras miúdas que surgiram no bojo dos canais de youtube oferecem exatamente as obras do passado, tentando bravamente ocupar um nicho de mercado que parece resistir.
Colecionadores mais antigos como eu, que viveram esses tempos diferentes, podem recorrer ao passado sem o reformismo que agora está em vigor. Pois o impedimento de acesso a obras diversas também atinge os criadores, que acabam por oferecer o que o gosto atual prefere.
É uma verdadeira ditadura do gosto que modifica a história dos quadrinhos de modo perigoso, pois a criação e a imaginação começam a operar num espectro muito reduzido, justamente porque devem conviver com a sobrevivência dos criadores.
A história dos quadrinhos engessa um passado que está sempre aberto para ser reformado e abre ao presente a ditadura do gosto comandada por interesses simplórios.
Atmosfera zero, de Steranko é, ao mesmo tempo, a revelação que mesmo diante das mesmidades de quadrinhos feitos para empurrar filmes, os autores podiam imprimir a genialidade superior ao próprio filme, mas também revela o fim de um tempo, em que criar dependia só do criador. Hoje depende do mercado.
Quando trabalhou para a Marvel de Stan Lee, Steranko recordou o esforço do chefe em enquadrar seus trabalhos no formato editorial que exigia, mas ele sempre alterava a ordem para seu caminho. Essa autonomia já não encontra razão de existir num mundo editorial coeso e limitado pelo gosto que construiu.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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