Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Observando a tela vi e ouvi um garoto que dizia para mãe ter mais tempo para ela, não trabalhar tanto, que ela estava doente de tela e eu ali, olhando pra tela, surpreso. Ele também falava comigo.
A tela é onde o mundo de dentro encontra o mundo de fora.
Como o mundo de fora por vezes refletia um deja vu, e cada deja vu é um distúrbio discreto no alinhamento entre os mundos, a tela foi ganhando um pedaço do real que agora já ocupa todo ele, sem espaço para distúrbios.
Muito já se falou sobre a inteligência da tela, seus algoritmos que raqueiam nossos desejos, que orientam nosso perfil e acaba por dominar nossa inteligência, mas gostaria de refletir de modo mais complexo sobre essa nova forma de domínio, que instala no interior os dispositivos de manifestação tecnológica cuja eficiência é absoluta. Me lembrei do Turco.
Reconstrução do autômato O Turco
O Turco foi uma máquina de jogar xadrez supostamente provida de inteligência artificial construída na segunda metade do séc. XVIII. De 1770 até sua destruição num incêndio em 1854, foi exibido por vários proprietários como um autômato, apesar de o seu funcionamento ter sido revelado no início da década de 1820 como um elaborado hoax. Construído por Wolfgang Von Kempelen (1734-1804) para impressionar a Imperatriz Maria Teresa da Áustria, o mecanismo parecia ser capaz de jogar uma partida contra um forte oponente humano, assim como executar o problema do cavalo, onde o cavalo deve ser movimentado no tabuleiro de modo a ocupar cada casa somente uma vez.
O Turco era na verdade uma ilusão mecânica que permitia a um jogador de xadrez escondido operar a máquina. Com um operador habilidoso, venceu a maioria dos jogos que disputou durante suas demonstrações pela Europa e América por quase 84 anos, incluindo desafiantes famosos como Napoleão Bonaparte e Benjamin Franklin. Embora muitos suspeitassem de um operador humano escondido, o hoax foi inicialmente revelado somente na década de 1820 por Robert Willis.
A máquina foi a inspiração para outros autômatos falsos como o Ajjeb e o Mephisto, e para El Ajedrecista que foi a primeira máquina capaz de executar com precisão um final de partida do xadrez.
Hoax é um termo hoje muito comum nas comunidades de internet. Significa embuste e oculta tentativas de engodo, fazendo o outro acreditar que algo não real é real; todavia, é possível perpetrar um embuste fazendo somente declarações verdadeiras usando palavreado ou contexto pouco usual. Tanto as ideologias conquistam grande sucesso por seu caráter sofisticado, tornando instituídos discursos elaborados e teorias de difícil compreensão.
Por exemplo, os embustes de James Randi fazem troça dos que acreditam no paranormal. Os vários embustes de Joey Skaggs satirizam nossa disposição para acreditar na mídia.
Embustes políticos são por vezes motivados pelo desejo de ridicularizar ou enxovalhar opositores políticos ou instituições políticas, frequentemente antes das eleições. Governos frequentemente perpetram embustes para ajudá-los na realização de metas impopulares, tais como declarar guerra (por exemplo, o Despacho de Ems). De fato, há frequentemente uma mistura de embuste direto e supressão e gerenciamento da informação para dar a impressão desejada. Em tempo de guerra, rumores abundam; alguns podem ser embustes deliberados (a primeira vítima da guerra é a verdade).
Há frequentemente consideráveis controvérsias, sobre se um dado factoide deve ser considerado como verdade ou embuste.
No âmbito industrial, tende a indicar “fabricações relativamente complexas e de grande escala” que possuem problemas/enganos que vão além da “causa de prejuízo material ou dano à vítima”.
No âmbito da informática, hoax (na tradução literal: “embuste” ou “farsa”, derivado do encantamento hocus-pocus, “trapaça”) são boatos em forma de mensagens, histórias ou notícias comumente disseminados na Internet, via e-mail e redes sociais, cujo conteúdo consiste em apelos, geralmente dramáticos, de cunho sentimental, religioso ou difamatório. Há também as conhecidas “correntes” de supostas campanhas filantrópicas ou de socorro pessoal, as cobranças bancárias e os avisos sobre falsos vírus cibernéticos que ameaçam contaminar ou formatar o disco rígido do computador. A propagação desses boatos na internet pode ser muito rápida.
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Hocus Pocus é um encantamento utilizado por mágicos do século XVII com a função de criar um ar de mistério em suas performances. Esse encantamento atua na tela como um espelho de contos de fábula, projetando o que querem seus usuários. Por vezes as escolhas são orientadas para atingir um determinado fim.
Os Protocolos dos sábios do Sião, uma grande influência nas teorias da conspiração modernas, relata um suposto plano de domínio global por parte dos judeus. Embora apócrifo, instrumentalizou o antissemitismo durante os últimos 100 anos. O discurso de Polly Baker, frequentemente citado como a primeira tentativa norte-americana de promover os direitos das mulheres, foi na realidade escrito por Benjamin Franklin. O Despacho de Ems precipitou a Guerra Franco-Prussiana de 1870-71. A Carta de Zinoviev é vista como tendo sido fundamental para a vitória do Partido Conservador do Reino Unido nas eleições gerais de 1924. O discurso de Cincinnati, pronunciado pelo presidente George W. Bush em sete de outubro de 2001, com o intuito de legitimar o início das movimentações para a invasão na Guerra do Iraque, fazendo a associação do governo iraquiano aos Ataques de 11 de setembro de 2001 e à produção de Armas de destruição em massa, químicas e biológicas.
Estes são alguns exemplos do uso do hoax para produzir eventos globais. Nos últimos anos, no Brasil, a prática foi disseminada em todo espectro da pauta política, produzindo efeitos consideráveis nos resultados eleitorais.
Todavia, a tela do móbile tornou muito mais íntima essa relação e cada usuário se tornou um elemento em diálogo funcional e ordinário com a teia universal de hoax.
Os fraudadores Dreadnought em trajes abissínios; a figura barbada na extrema esquerda é a escritora Virginia Woolf.
Se nos níveis históricos e sociais a eficiência do hoax é da dimensão expressa aqui, no nível individual ela se absolutiza. Pois transforma a tela no próprio território do Turco. E diante do Turco, até Napoleão perde o jogo.
Somos minúsculas células de um organismo global em sua máxima atuação e não é possível escapar a seu domínio, mesmo diante do apelo do filho que requer um pouco da atenção exclusiva ao dispositivo.
Aqui podemos afirmar que a individualidade e a identidade se fundem aos mecanismos hoax e todos se alinham aos apelos e sugestões de infinita eficiência, pois oferecem a própria identidade do usuário e até mesmo sua individualidade.
É preciso explicar como um mecanismo em tela oferece ao usuário sua identidade e sua individualidade se ele, supostamente, nunca a perdeu. Mas de fato, a perda da alma foi um evento historicamente não registrado.
A história da alma no mundo colonial é também parte das etapas que esse mundo formulou. Desde que a alma que caiu do céu incorporou os primeiros humanos soberanos no raiar da modernidade, a jornada dessa incorporação manifestou uma educação para a mente, uma forma de família para o amor e uma forma liberal para o trabalho.
Mas no raiar do século XXI nada disso permaneceu. A educação já não tinha serventia, o amor se transformou num acordo de prejuízo proletarizando a união, o trabalho desapareceu de sua forma digna que o século anterior havia construído, e o século que nascia já vinha acompanhado da tela de lítio, o mesmo produto que insufla a ansiedade e a depressão.
Dessa forma, no mesmo momento, desapareceu a individualidade fornecida pelos avatares das relações sociais e a identidade, que até então era classista.
Não foi a toa que os discursos identitários começaram a ganhar força, seja nas racializações, nas questões de gênero ou de identidades sexuais. E todas essas oferendas vieram diretamente na tela de lítio dos dispositivos móveis ou imóveis. Mas essas são apenas as identidades mais exuberantes, miríades de identidades compostas são oferecidas continuamente pelas telas de lítio.
A formatação do usuário foi garantida pelas identidades e individualidades ofertadas. Não há como desfazer essa união entre o ego e o hoax, que consolidou um jeito de ver a si mesmo pelo espelho diante de si e o espelho confirma: ninguém é melhor do que tu!
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*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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