REALISMO E QUADRINHOS
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
As histórias em quadrinhos contemplam um reino de fantasia e distorções que são por si incompatíveis com o realismo. O que não quer dizer que artistas diversos não possam exercitar a arte do realismo em quadrinhos.
Mas o preço a ser pago pelas correções imagéticas realistas nessa forma especial de mídia da distorção é um desacerto que só pode ser compreendido plenamente com a perfeição que o artista busca de modo demiúrgico. É como uma divindade que a pena artística corrige a distorção entre mídia e arte. E ser um deus é admirável.
Existe outra forma em que o realismo se distorce e aproxima a expressão mimética da fábula. Gostaria de aproximar três obras em que os artistas de quadrinhos são transformados em personagens de quadrinhos.
A primeira delas é Em busca do Tintin perdido, de Ricardo Leite, uma fantasia autobiográfica elaborada com esmero e delicadeza de quem se afastou da mídia e retoma a velha jornada sem os traumas da derrota.
A outra obra é The strange death of Alex Raymond, de Dave Sim e Carson Grubaugh. Nesse caso a genialidade de Sim traça a grande trama de um universo túrbido envolvendo tempos e espaços para além das páginas bidimensionais dessa arte.
Finalmente, a mais ousada obra realista que conheço: Chamada geral, texto de Pedro Anísio e arte de Eugênio Colonnese, uma impressionante homenagem aos 25 anos da Ebal, a mais importante editora de quadrinhos brasileira de todos os tempos.
O que garante o enovelamento das três obras é o traço que anseia pela realidade e a presença em todas elas de artistas ocupando lugares de personagens.
EM BUSCA DO TINTIN PERDIDO é um livro tributo, em 10 capítulos, onde o autor presta homenagem aos criadores de quadrinhos que lhe deram asas e o ensinaram a sonhar. “Uma HQ sobre a paixão pela 9ª Arte”, como Ricardo Leite resume. A aventura tem como pano de fundo uma viagem a Bruxelas para visitar o Museu Hergé. Através dessa fantasia autobiográfica, ele convida o leitor a reviver a seu lado uma jornada mágica e inspiradora que despertou seu desejo adormecido de desenhar quadrinhos. Um resgate emocional!
Numa narrativa visceral, o artista passeia por suas memórias e revive encontros, imaginários ou não, com centenas de grandes mestres da 9ª Arte. Ao longo das páginas, eles discutem técnicas de desenho e falam sobre as diversas escolas de linguagem, passando pelos grandes festivais de Quadrinhos de Itália, França, Bélgica e Brasil. Um grande mergulho no universo mágico dessa mídia fabulosa! No fim do livro, um minucioso glossário permite o reconhecimento de cada artista homenageado nas 224 páginas, onde também o autor indica quais de seus livros recomenda a leitura.
Sobre The Strange Death of Alex Raymond:
“A resposta dos quadrinhos para Finnegan’s Wake, uma obra inspirada de gênio obsessivo que levará muito tempo para desembaraçar.” – Rob Salkowitz, colaborador sênior, FORBES.
“A Estranha Morte de Alex Raymond é um dos quadrinhos mais espetaculares que já li ou vi. Não posso recomendá-lo o suficiente, embora você possa odiá-lo. Bizarro, lindo e completamente único.” – Jim Rugg, cartunista Kayfabe, Street Angel, The P.L.A.I.N. Janes.
“Esta é uma obra-prima. Sinto-me honrado por tê-la visto.” – E. S. Glenn, autor de Unsmooth, cartunista do The New Yorker.
“Uma leitura obrigatória para qualquer pessoa interessada na história e na arte dos quadrinhos” – Brandon Graham, King City, Warhead, Prophet.
“Grubaugh fornece uma conclusão brilhante e adequada para o que de outra forma teria sido uma das obras inacabadas mais notáveis dos últimos tempos. Eu, pelo menos, estou animado por ter a Estranha Morte de Alex Raymond concluída em minhas mãos.” – Gary Spencer Millidge, Strangehaven, Alan Moore: Retrato de um Cavalheiro Extraordinário.
O lendário criador Dave Sim é conhecido mundialmente por seu inovador Cerebus the Aardvark. Agora, em A Estranha Morte de Alex Raymond, Sim dá vida à história dos maiores criadores de histórias em quadrinhos, usando suas próprias técnicas. Partes iguais, Understanding Comics e From Hell, Strange Death é uma colisão frontal de desenho a tinta e intriga espiritual, quadrinhos pulp e filmes, história e ficção. A história traça a vida e as técnicas de Alex Raymond (Flash Gordon, Rip Kirby), Stan Drake (Juliet Jones), Hal Foster (Prince Valiant) e muito mais, dissecando suas técnicas por meio de recriações de suas obras de arte e destacando as ressonâncias metatextuais que amarrá-los juntos. Do prefácio de Eddie Campbell.
Nossa terceira obra em texto parafraseado de Gilberto M.M. Santos (2004).
Pensada para ser, simultaneamente, um presente para os leitores e um panfleto de aclamação ao trabalho da Ebal, a edição especial de comemoração de 25 anos da editora, constitui um bom exemplo do uso da metalinguagem nos quadrinhos.
A história começa com uma imagem de página inteira, na qual uma plataforma espacial envia uma mensagem de “Chamada Geral” pelo tecido espaço/temporal. A trama pode ser dividida em três fases. Na primeira, os diversos personagens publicados pela editora recebem a misteriosa comunicação.
É deveras prazeroso e esdrúxulo acompanhar a profusão de personagens que circulam por aquelas páginas. Participam da história clássicos (Flash Gordon, Tarzan, Buck Rogers), infantis (Tom & Jerry, Mickey, Chapeuzinho vermelho), históricos (José de Anchieta, Fernão Dias, D. Pedro), super-heróis (Batman, Demolidor, Super-Homem) e até a Tia Arlete, a linda lourinha que apresentava desenhos animados em seu programa de TV. Sem dúvida, o maior e mais insólito crossover de todos os tempos.
A segunda fase da história se inicia com uma página central dupla, colorida, mesclando uma foto panorâmica do prédio da Ebal e desenhos dos personagens chegando à editora.
A narrativa passa, então, de objetiva a subjetiva. O próprio Adolfo Aizen explica aos personagens que eles foram convidados para a comemoração do aniversário da editora e, como esquisitice pouca é bobagem, começa a contar “telepaticamente” a história da Ebal e de suas publicações.
Eis que começa a terceira fase, surgem novos personagens e mais um narrador subjetivo, um garoto magrinho, cabeçudo e com óculos desproporcionais ao tamanho do rosto, que passa a ciceronear os convidados, conduzindo-os pelas instalações da editora.
O garotinho era ninguém menos que Otacílio d’Assunção (o quadrinhista Ota), que na época era funcionário da Ebal. No final da história, os convidados cantam a tradicional canção… Parabéns pra você.
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Alguns personagens não apareceram na festa, mas, pensando bem, será que existe alguma em que todos os convidados estejam presentes?
O texto é despretensioso e encomendado com especificações para um determinado fim. Tendo isso em mente, o leitor que tiver a sorte (enorme) de encontrar esta preciosidade em sebos vai se divertir e perceber que o Pedro Anísio, se não foi genial, foi eficiente, transformando um roteiro que poderia ser ridículo, numa história charmosa, com a ingenuidade característica da era Ebal.
A arte está perfeita, uma verdadeira aula. Colonnese passeia por diferentes estilos de desenhos com a facilidade própria de um mestre, utiliza hachuras e desenhos limpos, sombras e luz, desenhos chapados e outros com profundidade e perspectiva. Não bastasse a versatilidade demonstrada, apresenta ainda pluralidade de planos, enquadramentos e formatos de diagramação de páginas.
Pode ser notada uma economia no uso de onomatopeias, mas, com certeza, elas estavam lá. Apenas não foram percebidas, devido ao barulho. Afinal, era dia de festa.
Na segunda capa é apresentado um texto explicativo com o histórico da editora, a listagem dos personagens que participaram da edição e indicação da revista em que foram publicados pela primeira vez, além da relação das empresas que detinham os copyrights.
(https://universohq.com/reviews/chamada-geral-epopeia/)
Quando as histórias em quadrinhos encontram os autores grafados em suas páginas, em seus quadros, algo de peculiar parece acontecer. A inversão de papeis expõem nas próprias narrativas uma sequencialidade de rostos cujo imaginário ficava até então oculto na página. O fazedor quando surge diante de nós já não pode se esconder em seu fazer e admite um princípio de que, talvez, a realidade esteja sendo exposta no fazer.
E o fazedor fala por balões nas páginas das histórias em quadrinhos. Mas a realidade é de outra natureza e não fala como falam os personagens de papel. Esse constrangimento, em cada um dos livros aqui apresentados, é quase um pedido de desculpas no envolvimento necessários para compor as histórias. Seus rostos tangem como cordas de piano os acordes quase sem emblemas em busca da sonoridade muda de suas expressões.
Então ocorre um instante de magia. Como são autores os cantores de papel, passamos a ouvir suas cantilenas. Eles falam conosco de modo bem diferente dos personagens de papel e falam bem diferente dos seres de carne e osso que um dia foram. Não se encontram mais nem em um mundo nem no outro. Essa ambiguidade própria das farsas serve para nos retirar também dos mundos falsos em que nos encontramos. Como se também a nós faltasse algo de tangível no momento da leitura que esgarça o mundo e estampa a realidade incorrigível dos quadrinhos.
Esse tipo de realismo está bem longe de ser fantástico, mas se alimenta nas longínquas teias latino americanas. Vivem de autores como Jorge Luis Borges que encontrava nas bibliotecas os veios também de uma ilusão e nas lâminas das adagas as memórias de vingança. Ou nos mundos das veredas de Guimarães Rosa que, embora secas de pedra, com um escarro espumavam a vida plena do passado. Ainda em Júlio Cortazar, que acabou sendo atropelado justamente enquanto vivia uma de suas histórias improváveis.
Em sentido peculiar, os autores de quadrinhos que aparecem nessas histórias aqui expostas são também eles fantasmas vibrando sob a égide da invenção de Morel, que ilumina uma existência fática nas páginas vivas dos quadrinhos.
Não estando nem vivos nem mortos, os heróis das escrituras podem muito bem existir de acordo com a percepção do leitor, participante ativo dos destinos que normalmente atribuímos apenas às personagens fictícias das histórias.
Para os que apreciam os quadrinhos e conhecem sua trajetória, a arte realista em que mergulham autores aparentemente reais é uma diversão muito especial, pois capturam um vasto aspecto de existências que normalmente são negligenciadas das histórias, como se os criadores fossem mimeses de personagens e não seres reais que eventualmente morrem de causas naturais.
Como se dissessem que devemos adotar uma vida por almas e não por palmas. É um sentimento de religação, afinal, entre o leitor e os autores que serve para toda a atividade metanarrativa que envolve os quadrinhos.
Esse sentido de celebração que acompanha o entusiasmo de uma leitura num meio físico, tátil, sensorial, olfativo, em que os objetos carecem de cuidados que a cada dia se perdem nos labirintos virtuais em que mergulham a vida real e a realidade bruta para o refinamento de dados depurados como elementos memoráveis e que podem ser resgatados ao toque de um botão, pela ponta dos dedos do usuário.
De certo modo, o realismo dos quadrinhos nos termos aqui descritos, podem preservar uma realidade que se esvai pelos dedos em busca do desaparecimento institucional das tecnologias mercadológicas da perpetuação.
Como as fotografias que agora abundam nas memórias celulares, mas que desapareceram das paredes das casas. Telefones celulares com excesso de vida e casas com vazios de memória.
Antes que os quadrinhos sejam bem feitos por programas de autenticação e algoritmos sem face, a presença de autores nas suas páginas acaba por funcionar como o canto dos cisnes de uma era cuja artesania exigia solidão e anonimato, talento e abnegação, discrição e genialidade.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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