Racismo não

Fui racista. Inclusive, tenho um amigo negro

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Eu nunca esqueci esse episódio, que me serve de alerta e aprendizado. Espero, sinceramente, que meu amigo também não o tenha esquecido, pois ele tem o dever social de se lembrar, embora eu rogue seu perdão.

Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Novamente um vereador gaúcho está sendo acusado de racismo. Ou de pelo menos ter proferido uma frase racista. Desta vez, o caso foi em Vacaria, na sessão do último dia 30. A discutir se a intenção do político do PSDB era denegrir a imagem dos negros (uso este termo racista por pura provocação ao debate). É que a turma da relativização de ofensas que não são contra si já está em defesa do parlamentar.

O que quero discutir aqui é o principal argumento da sua defesa logo depois, quando foi desculpar-se. Entre outros, argumentou que tem em sua família e círculo de amizades pessoas negras.

Esse é o principal, se não único argumento de quem é acusado de ser/ter sido preconceituoso. Ainda que seja verdade que o homofóbico de plantão tenha amigos gays, por exemplo, isso em nada o impede de maldizer os homossexuais. Lembremos: os machistas têm mães, irmãs e até filhas. Também têm namoradas, mas, muitas vezes, elas são meras fachadas a encobrir a homossexualidade do parceiro que paga de machão aos amigos. Freud explica.

Lembro dum caso emblemático ocorrido no futebol. Apenas mais um entre vários. Em 2014, o então goleiro do Santos foi chamado de macaco por (grande) parte da torcida do Grêmio, na Arena, em Porto Alegre. O clube gaúcho foi punido com a suspensão da Copa do Brasil. Gremista, afirmo: foi pouco. Era o primeiro jogo dum mata-mata. E o Grêmio o perdeu em casa. Seria difícil reverter o placar na Vila Belmiro. Vou além: virtualmente desclassificado, o Grêmio foi beneficiado pela punição, pois houve quem defendesse, e não foram poucos, que ele, Grêmio, é que estava sendo a vítima no caso. Ou seja, saiu como mártir para muitos, ao invés de amargar uma eliminação dentro de campo.

Mas também desse caso o que quero falar é outro aspecto. Uma menina que foi flagrada pelas câmeras gritando “macaco” ao goleiro veio a público se defender usando argumento parecido com a do vereador e qualquer outro racista: ela tinha amigos negros. Inclusive, havia namorado um.

Eu não duvido de que ela tenha se relacionado com um homem preto. Pode ser até que realmente gostava dele. E, mesmo assim, era racista. Provavelmente não racista a ponto de desejar a morte dos negros; não racista a ponto de agredir fisicamente uma pessoa preta; não racista a ponto de não se permitir se apaixonar por um (romântico incorrigível, imagino que ela e o tal namorado foram eternamente felizes enquanto durou); mas racista a ponto de, achando que estava escudada pela massa de milhares, podia engrossar o coro da injúria.

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O racismo ou qualquer outro preconceito não ocorre somente quando há uma vontade, implícita ou explicita, de matar, de exterminar o outro. No Brasil escravocrata, em que os negros eram por lei inferiores, não havia o desejo de extermínio deles. Pelo contrário, dada a sua utilidade, os castigos físicos nos escravizados dificilmente o levavam à morte ou ao aleijamento. Sem contar nos senhores de engenho que tinham como amantes escravizadas. E por ventura eram, esses proprietários de escravizados, abolicionistas sem preconceito de cor?

Os preconceitos, racismo, neste caso aqui, muitas vezes são os chamados “estruturais”. É quando somos preconceituosos sem nos percebemos como tal. Quase escrevi que sem intenção, mas logo me veio a inflexão: será mesmo que, no nosso íntimo, não temos a intenção inconsciente de sermos. Apenas outra provocação.

O humorista Fábio Porchat afirmou que ele é um “machista em desconstrução”. Gostei da definição. Procuro vencer meus preconceitos diários, inconscientes e escondidos na comunicação (como escrever “denegrir” num sentido pejorativo).

Pois comigo já ocorreu de ser um racista escroto. E não vou me defender alegando que tenho amigos negros. Na verdade, isso ocorreu na presença do meu melhor amigo, que é preto. Ano que vem, fecha vinte anos que nos conhecemos. Já estamos marcando uma festa pra marcar a data. Nossa amizade durou mais que nossos casamentos. Pois, dizia, foi na presença dele, há uns doze anos, que fiz uma fala escrotamente racista. Estávamos num passeio de carro pela serra gaúcha (se eu não fosse um homofóbico em desconstrução, aqui viria uma piadinha). Aí cometi uma barbeiragem. Fiz isso e soltei uma fala muito racista. Na mesma hora ele me repreendeu seriamente. Eu fiquei muito constrangido e soltei outra escrotidão relativizadora: “modo de dizer, Negão.”

Eu nunca esqueci esse episódio, que me serve de alerta e aprendizado. Espero, sinceramente, que meu amigo também não o tenha esquecido, pois ele tem o dever social de se lembrar, embora eu rogue seu perdão.

Por essas e talvez outras, me considero um racista em desconstrução. O que pra mim pode não ter importância para quem é o alvo pode machucar. É como se diz: pra quem bate, tudo bem; mas quem apanha não esquece. Por isso, não escrevo mais denegrir ou outras palavras com o mesmo teor negativo. Nem chamo mais meu amigo de Negão, por mais carinhoso que eu possa achar que era (ele me devolvia a alcunha, chamando-me de Alemão).

Fui racista. Não racista ao ponto de agredir fisicamente ou mesmo querer a eliminação da raça. Mas sim fui racista a ponto de emitir uma infeliz fala racista. Tenho amigos negros que lutam pela causa, inclusive. E isso não me abona ou atenua o meu ato. Só o piora.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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