Bolsonaro não morreu
A morte política de Jair Bolsonaro ainda não foi concluída. Porém, mesmo que perca toda força e interlocução, deixará o fascismo aceso e a extrema-direita organizada e pronta para novos golpes à democracia
Anderson Pires*
A política é um ambiente pródigo para sagas. A história tem exemplos diversos, alguns épicos outros desastrosos. Os personagens conseguem perpetuar suas passagens, pois, em algum momento, tiveram relevância e ocuparam espaços de destaque, independentemente do legado que tenham deixado para a humanidade.
O Brasil tem políticos que viveram suas sagas e que, provavelmente, serão lembrados pelas histórias de ascensão e queda. Entre os presidentes podemos lembrar de Getúlio Vargas, Jânio Quadros, Juscelino e Collor de Mello. Suas trajetórias tiveram momentos épicos, com passagens dignas de serem retratadas em filmes e livros, mas com quedas também marcantes.
Alguns são mais lembrados por motivos pouco louváveis, ou até por forças ocultas como foi o caso de Jânio Quadros. O homem que chegou à presidência com uma vassoura na mão para varrer a corrupção, renunciou sem que os motivos ficassem claros.
Mas o Brasil recente continua a produzir grandes histórias políticas. O próprio presidente Lula, que está em terceiro mandato, vive ainda capítulos de um enredo que parece ter final feliz. Da condição de um dos políticos mais respeitados no mundo, viu sua vida mudar completamente e ser preso. Em seguida, retornou à presidência em mais um momento épico.
Nesse intervalo da história do Lula, entre a saída ovacionado da presidência em 2010 até voltar ao cargo em 2023, o Brasil pariu um novo personagem, que sempre esteve na margem da política, muitas vezes tratado como folclórico, mas que representava o pensamento conservador e fascista de milhões de brasileiros: estou me referindo a Jair Bolsonaro.
Bolsonaro foi um deputado do baixo clero, que durante 28 anos na Câmara não apresentou qualquer projeto relevante. Envolvido com milícias no Rio de Janeiro e denúncias de rachadinhas, ficou conhecido pelas suas falas preconceituosas e criminosas destinadas a segmentos sociais, como mulheres, negros, indígenas e comunidade LGBT+.
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O político que parecia irrelevante espelhava o Brasil que explodiu entre 2010 e 2016, com o golpe em Dilma, o lavajatismo, ascensão de grupos de extrema direita e pautas moralistas. Foi essa conjuntura que abriu espaço para eleição de representantes do racismo, da homofobia, da xenofobia, do machismo, do armamentismo, da defesa à ditadura e até do crime organizado por milícias. Bolsonaro era a síntese de tudo isso e, resumidamente, foi assim que chegou à presidência do Brasil.
Na presidência Bolsonaro mostrou que, ao contrário do que se imaginava, era exatamente aquilo que propagava em suas falas pelos corredores da Câmara dos Deputados. Muitos pensavam que a responsabilidade da cadeira de presidente lhe traria o mínimo de ponderação que o cargo exige. Não foi o que se verificou.
O presidente Bolsonaro se mostrou ainda pior que o deputado. Para agravar a situação, o mundo viveu uma pandemia, que serviu para expor a desumanidade do governante do país. Quem deveria cuidar para minimizar danos e sofrimentos fez exatamente o contrário. A morte foi tratada com desdém. O negacionismo foi marcado pelo incentivo ao contágio e o estímulo para que as pessoas não se vacinassem.
Durante seu governo foram diversas denúncias de corrupção. O uso dos recursos públicos foi feito sem qualquer escrúpulo. O deboche era escancarado ao gastar milhões patrocinando seus interesses particulares e atos políticos. O mesmo Bolsonaro que esbanjava secretamente com o cartão corporativo aparecia em público comendo numa barraca todo sujo de farinha.
O Brasil sempre identificou nos políticos os chamados crimes do colarinho branco. Bolsonaro fez questão de descer ao nível da prática do crime comum. Algo coerente com sua trajetória de proximidade com bandidos, a exemplo de figuras como Fabrício Queiroz e familiares do miliciano Adriano Nóbrega, que tiveram empregos em seus gabinetes.
Além das denúncias de corrupção, o processo de identidade com os setores mais abjetos da sociedade brasileira precisava ser completo. Dessa forma, tivemos um presidente que surrupiava joias avaliadas em milhões de dólares em total sintonia com bilionários brasileiros que desviam valores absurdos com fraudes contábeis, mas ambos fazem palestras dando lições de moral.
É essa identidade que fundamenta o bolsonarismo, não existe ideologia, muito menos princípios. Todos têm em comum a moral como guia dos atos. Adequam suas condutas ao que considerarem correto e atacam qualquer debate ético. Afinal, seja na bíblia ou nas leis, o que vale ao moralista é a interpretação que achar conveniente. Sendo assim, justificam roubar e matar com versículos, parágrafos e artigos.
A saga de Bolsonaro ainda não chegou ao fim. O fato de estar inelegível não significa que deixará de ter eco com todos esses que pensam e agem como ele. Os crimes que praticou sempre tiveram a concordância e absolvição dos seus apoiadores. Logo, a condenação pela justiça só reforça a crença dos que propagavam as mentiras, ataques às instituições e desqualificação das leis.
É verdade que não vimos nenhuma grande manifestação por conta da condenação de Bolsonaro no TSE. Em certa medida, a conjuntura tem diminuído o acirramento público entre os pró e contra o ex-presidente. Mas engana-se quem pensa que isso significa uma mudança de opinião ou migração política significativa. Os conservadores seguirão com os mesmos valores e as mesmas pautas cheias de ódio e preconceito.
Quem comemorou a condenação de Bolsonaro, provavelmente, fará isso novamente com o desfecho de outras ações que tramitam. Existe a possibilidade de ser até preso. São muitas acusações e evidências da prática de crimes. A morte política de Jair Bolsonaro ainda não foi concluída. Porém, mesmo que perca toda força e interlocução, deixará o fascismo aceso e a extrema-direita organizada e pronta para novos golpes à democracia.
*Anderson Pires é formado em comunicação social – jornalismo pela UFPB, publicitário, cozinheiro e autor do Termômetro da Política.
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