Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Em recente notícia publicada no pragmatismo político:
“Em evento pró-armas, Eduardo Bolsonaro iguala professores “doutrinadores” a traficantes. Declaração ocorre uma semana após o Pragmatismo denunciar o caso do professor que foi espancado e ameaçado de morte no Paraná por um pai de um aluno, delegado da Polícia Federal.
“O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) igualou professores a traficantes durante participação em um evento pró-armas, neste domingo (9), em Brasília.
“No discurso, dirigido a manifestantes bolsonaristas e apoiadores da pauta armamentista, o parlamentar pediu aos pais presentes que prestassem atenção na educação dos filhos e acompanhassem o que os jovens aprendem para “não ter espaço para professor doutrinador tentar sequestrar as crianças”.
Há alguma verdade nisso e o imprudente deputado é daqueles profetas que balbuciam o futuro sem se darem conta do que realmente foi pronunciado.
Para entender que o tiro que deu errou seu alvo e acertou em outro, muito mais estrutural carecemos de um pouco de abertura para fora da prisão cartesiana da razão.
A educação escolar inaugurada na Prússia nos idos do século XIX está perfeitamente vigente nos dias de hoje em todos os países do mundo. Essa educação formal tem como função social a obediência de todos que passam por seus bancos escolares. Obediência às regras sociais, às formas políticas, ao tipo de trabalho de natureza capitalista, dentre tantas outras variações do mesmo termo, aceitar a natureza desigual da sociedade que nasceu nessa mesma época.
O alinhamento das três instituições principais desse modelo, a saber, a família, a educação e o trabalho, continuam a nutrir a reprodução do sistema a despeito de todas as invencionices ante crise. Mas os professores são realmente a cabeça de ponte desse processo.
A doutrina que praticam não é a ideológica, forma oportunista que denuncia o deputado sem noção, mas é a doutrina do conhecimento como poder, da obrigatoriedade da presença na escola, das avaliações conservadoras do modelo hierárquico.
É assim, a despeito da completa democratização da informação, dos meios virtuais de aprendizados e das democracias tangenciais da política institucional. Todos os procedimentos que esgotaram os lugares de poder foram substituídos pelos empoderamentos mais conservadores a que dotaram os estudantes. Se a hierarquia social aparentemente fraquejou com a remoção da autoridade, a escola fez surgir outras hierarquias, dos pequenos tiranos empoderados desde a sua infância como consumidores profissionais.
E a escola é esse lugar cuja sociabilidade nutre os fundamentos empoderados em seus jovens aprendizes, não mais do conhecimento, mas das relações desiguais, do bullying, do desrespeito que os adultos devotam às crianças, habilitando-as a cumprirem sua jornada tirânica. Pois dizer ao outro o que deve fazer é parte dessa jornada desrespeitosa e indigna.
E não são professores dessa ou daquela doutrina ideológica que assim procedem, são todos os professores, ancorados por todos os pais que abdicaram da autoridade e a substituíram ao consumismo, quando o afeto e o respeito poderiam ocupar o lugar decadente da autoridade da palmatória.
O tráfico a que o deputado se refere não é de fato o das drogas ilícitas, mas o dos bons conselhos da competição, da desumanização, da santa ignorância que todos os professores imaginam nutrir seus pupilos para o bem deles, para que tenham sucesso na vida, para que possam competir com vantagens a ocupar os parcos lugares de uma sociedade desigual e injusta.
Alimentam continuamente a fogueira da desigualdade com suas boas intenções, alargando as fronteiras do antropoceno, esse sistema que em tudo é destrutivo contra toda forma de vida, para enaltecer a soberania do humano que a modernidade aconselhou.
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E não há quem tenha força para denunciar essa tragédia, pois o sistema orienta que competir, progredir, desenvolver é o único caminho e a escola é a instituição que encabeça essa jornada, formando um exército de pequenos tiranos, desumanos, indiferentes à vida e muito adequados a reproduzir o bom e velho modelo doutrinário, do homem como lobo do homem e soberano da vida.
Somos cúmplices de ensinarmos às novas gerações de filhos, alunos, trabalhadores as maravilhas de uma sociedade desigual, oferecendo equipamentos humanos para a competição, doutrinando para que chegam na frente de seus semelhantes, para desenvolvam e cessem o envolvimento reumanizador e que o futuro seja um reino de desigualdade e soberania.
Pouco importa diante dessa fogueira de desigualdade que continuamente fermentamos com nossos vínculos, esperar que termine o racismo, a homofobia, o feminicídio, pois esses são efeitos de uma sociedade desigual e a desigualdade, antes de ser econômica, será sempre simbólica, desumana e injusta, movida por pré-julgamentos, por preconceitos, por pré-condições hierárquicas.
E realmente pouco importa se quem faz esse tipo grotesco de doutrinação é de esquerda ou de direita, se o faz por bem ou por boa intenção ou porque deseja que seus filhos, seus alunos ou seus funcionários vençam no mundo da desigualdade, pois tais atitudes só fazem avançar a desigualdade e com ela o racismo, a homofobia, o feminicídio.
O bem-intencionado deputado, como todos que ele critica, é também um nutridor de desigualdade, de desumanidade, de incoerência política. Todos cúmplices no coro das acusadores ingênuos que fazem da educação o inferno dos vivos, a glória dos mortos e reprodução dos universitários.
Estamos sequestrando os rebentos para as fileiras da vida ruim marcada pelo poder, por seu uso degenerado, pois o poder é o senhor da heteronomia, o professor doutrinador da reprodução social capitalista.
Como se não houvesse outro jeito, outra forma de viver, condenando gerações ao pensamento único do concordo discordo.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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