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Testamento

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Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político

Acho um pouco pedante fazer testamento, sobretudo com orientações para funeral e afins. Por isso, vou fazer um aqui. Sou um egocêntrico incorrigível.

Primeiramente, devo informar a quem deixo meus bens: meus bens? rarararararararará.

Dividida a dinheirama toda, passo a me preocupar com o funeral. Detalhista e metódico, já me imagino pedindo a intervenção divina para que Deus dê Seu jeito e interfira na organização. Não adianta, as coisas só saem como queremos, se fizermos. Mas, por motivo de força maior, estarei impossibilitado de ajudar.

Antes de mais nada, pra mim não cabe este papinho de “nada de choro”. Pelo contrário, quero lágrimas e sofrimentos pela minha partida. E por ventura já não disse que sou egocêntrico?

Peçam licença ao bodegueiro e realizem o velório nalgum bar que muito frequentei. Não for pedir muito, coloquem meu corpo em descanso sobre a mesa de sinuca. E sim, o chope e a cachaça purinha correndo às custas do meu seguro de vida (ah, agora lembrei, preciso fazer um seguro de vida). Se alguém se dispuser a tal, assem uma carne bem gorda. Mas, por favor, uma última consideração: mal passada, pelo amor deste Deus que agora está ao meu lado.

À minha viúva, peço uma última resiliência: respeite as minhas ex-amores que forem prestar o último “oi, sumido”.

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Aos mais sensíveis, peço também que relevem as brincadeiras dos meus amigos. Eles não levam nada a sério. Algum vai dizer: “se levanta daí, preguiçoso”; outro comentará baixinho, enquanto serve um com colarinho espumando: “ainda bem que ele não tá bebendo, senão, ia faltar chope.” Mas todos eles estarão tristes. Me chamar de corno-broxa é o jeito deles dizerem que me gostam.

Por falar em broxa, duvido que o imbroxável se faça presente. É muito possível, aliás e dadas as últimas notícias, que ele esteja preso. Outrossim, seria baita cinismo da parte dele. Depois de tudo que falei e escrevi lhe malfadando. Mas é, no fim das contas, político, né? Vai saber se não aparece por lá. Peço que o respeitem. Sou contra atacar políticos com agressões, seja da agremiação partidária que for.

E por falar em Política, essa com pê maiúsculo, coloquem sobre mim uma bandeira do PT. O dono do bar vai protestar, mas insistam. Não sou filiado, mas, dada as circunstâncias, é preciso cada vez mais fortalecer esse que é o principal partido do País. Digo mais, a considerar somente as democracias, é o mais importante partido esquerdista do mundo. E paremos de nos enganar, China e Venezuela não são democracias plenas. Morto, não tenho mais melindres em dizer a verdade.

Já que este é um documento público, aproveito para convidar nosso presidente. Como a morte vem sem aviso, já solicito junto à FAB que esteja de prontidão a oferecer uma aeronave que o busque para esse urgente e inadiável compromisso. É possível que ele esteja na ONU, encantando os líderes mundiais com seus discursos e mesmo cobranças aos países mais ricos (como é bom ter um presidente que não nos envergonha perante o mundo), mas, eu morri, ele precisa voltar logo. Lástima eu não poder recepcioná-lo com um abraço e uma cachaça mineira, brindando ainda às eleições e ao porvir de melhoras.

A fila de discursos será enorme. Todos querendo dizer algumas últimas palavras sobre mim. Falem sem parcimônia e ouçam a todos com atenção. Nos elogios, haverá rompantes de pranto. Ficarei envaidecido, ao que Deus me repreenderá por este pecado capital.

Mas, por favor, não se prevaleçam da minha incapacidade agora eterna de contra-argumento. Não me injuriem ou me caluniem. Haverá quem vá me chamar de comunista. Nunca defendi o comunismo. Que se registre: acho o socialismo uma utopia dispensável e o comunismo é mais injusto que o capitalismo. Defendo um capitalismo mais humanitário, com menos desigualdade de renda. Não tenho nada contra, por premissa, o lucro e a mais-valia, inclusive.

Ainda sobre os discursos, podem utilizar a chamada linguagem neutra, mas saibam que sempre foi um debate que ignorei, mais preocupado estava com o (ab)uso dos estrangeirismos em nosso vernáculo. Portanto, sem palavras em inglês, óquei?

Aos que ficam, espero que o Brasil nunca mais seja governado pela extrema-direita. Que, sendo o Lula, o PT ou outro, que a democracia e as desigualdades de todos os tipos diminuam. Conversarei ao pé do ouvido com Deus sobre isso, pois deixarei entes queridos aqui.

Agora, podem me cremar e espalhar minhas cinzas num pomar de cultura orgânica de assentamento do MST.

*Delmar Bertuol é professor de história da rede municipal e estadual, escritor, autor de “Transbordo, Reminiscências da tua gestação, filha”

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