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O apagão e o jogo insano de uma dezena de acionistas

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Fonte: Adaptado de freepik

Denis Castilho*, Pragmatismo Político

O apagão do último dia 15 de agosto tem relação com uma questão de ordem técnica, mas que tangencia outra de ordem estratégica. Pouco antes da interrupção, o subsistema NE (Nordeste) teve um pico de geração que implicou no acionamento de um dispositivo denominado Erac (Esquema Regional de Alívio de Carga). Quando há oscilação de carga (como a que ocorreu no transporte de grandes blocos de energia do NE para o Sudeste do país) a transmissão é interrompida no sentido de evitar colapsos e prejuízos maiores.

Desde os anos 2000, estudiosos vêm alertando para a necessidade de investimentos nos sistemas de transmissão em função do aumento da demanda nacional e especialmente pela natureza da matriz eólica que incorre a maiores oscilações diárias. Tecnologias para suportar esses picos já existem, mas fica patente que a prioridade nacional deixou de ser técnica.

Isso mostra que tanto o sistema de regulação como o de fiscalização cederam aos imperativos e pressões dos acionistas que se apropriaram do setor elétrico nacional.

O apagão da última terça-feira, portanto, tem as digitais do mercado financeiro. Mas é preciso entender que as causas não são de hoje e nem apenas dos últimos quatro anos.

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Tudo começou com as reformas da década de 1990, especialmente com a lei de desestatização e o que ela desencadeou. Ali foi plantado o regime que prioriza o famigerado equilíbrio econômico-financeiro das geradoras, transmissoras e distribuidoras privadas em detrimento de um eficiente sistema de regulação. O que isso significa?

Significa que os dividendos (parcela dos lucros que são repassados aos acionistas) são mais importantes que as demandas técnicas e as manutenções do setor.

O aumento da produção de energia eólica no Nordeste tem proporcionado impressionante transporte de blocos dessa energia para o Sudeste do país. Embora o macrossistema nacional tenha suportado esse transporte, a variabilidade desses grandes blocos ao longo do dia exige flexibilidade operativa do sistema de transmissão.

A falta de investimentos para ampliação na capacidade de transmissão e para sua flexibilização; a dependência às concessões (vide os linhões ligando Belo Monte ao Sudeste brasileiro) bem como a irresponsável e criminosa limitação ao direito de voto da União em decisões estratégicas da Eletrobras (somado ao seu contestável processo de privatização), sem dúvida, avolumam o imbróglio.

Houvesse uma política energética séria e bem delineada do ponto de vista técnico e com base na soberania energética nacional com prioridade das demandas produtivas, isso não teria acontecido. O sistema foi articulado de forma redundante para alimentar tanto o Nordeste como o Sudeste.

Atualmente o primeiro tem condições de exportar energia, mas demanda atualização tecnológica e ampliação do sistema de transmissão. Se a ampliação na capacidade de geração estava prevista e até planejada, não resta dúvida que o lapso na atualização tecnológica guarda relação direta com todo processo de apropriação financeira do setor e com as práticas espoliativas de seus agentes.

Enquanto a apropriação política absorve o fato, o povo se perde nas narrativas e um país inteiro cede o jogo no tabuleiro insano de uma dezena de acionistas.

*Denis Castilho é doutor em geografia e professor do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás.

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