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TRATADO SOBRE A BURRICE

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TERRANUS

Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

O que é a burrice?
A burrice é rubicunda.
A resposta a essa indagação depende do entendimento do que pode ou não ser a inteligência. Se inteligir for definido como saber viver a vida boa e isso, reconheço, que pode ser muito subjetivo, mas também podemos considerar um conjunto de sensações que fornecem a um subjecto leveza e sossego, então creio podermos considerar alguns aspectos da manifestação da inteligência e, por oposição razoável, o que pode ser considerado burrice.
Para mim, o primeiro sinal de uma vida boa é a quantidade de tempo que disponho para viver o meu dia. Em outras palavras, quanto tempo nego ao sistema heteronômico e reservo para mim mesmo.
O tempo pode ser um componente importante para que uma vida encontre conforto em si mesma, sem necessidade de preenchê-la com objetos e distinções. Então, se é possível viver uma vida boa nutrindo um sentimento de plenitude e aceitação, o oposto, o desconforto, a ansiedade, o futuro são componentes de uma vida ruim. Essa é a fronteira limítrofe que separa inteligência e burrice.
É atestado de burrice querer mudar o mundo? Bom, o mundo em que vivem todos os outros independe de um agente poderoso suficiente para alterar sua jornada. Claro que pode mudar o próprio mundo, sua visão, digamos assim, mas o mundo em si está constituído por infinitas peças ativas de vontades e projetos, de desejos e aflições e cada uma determina o elo e o entrave.
Diz um velho ditado que a dor é inevitável, mas o sofrimento não. Penso que aqui reside bem a fronteira: o sofrimento que é opcional. Portanto, desejar o sofrimento é burrice. Resta que consideremos esse estranho desejo de penitência como força motriz da burrice, considerando que sofrer é a maior prova de que uma pessoa é burra pra caramba.
Então é burrice ficar apegado ao sofrimento. Apego é sofrimento.
O apego te liga a algo objetil, abjétil e te objetifica. A necessidade criada pelo apego é abjeta. Qualquer ligação que ocorra pelo apego desumaniza o subjecto e instaura em seu mecanismo aparatos de coisificação. O apego faz com que o planeta gire em torno do apegado, isolando sua existência num vórtice egóico. O mapa é parafílico que envolve o apego.
Parafilias são fantasias ou comportamentos frequentes, intensos e sexualmente estimulantes que envolvem objetos inanimados, crianças ou adultos sem consentimento, ou o sofrimento ou humilhação de si próprio ou do parceiro.
É presumível que o ser heteronômico é frágil quando sente falta de algo. Sua incompletude emana a força de seu apego, como se buscasse algo além de si para manter-se vivo e pendente, sempre próximo do seu abismo coloquial.
Por isso o apego é o mapa parafílico que sempre parece apto a costurar um objeto em outro objeto, mantendo a colcha de retalhos de sua individualidade fictícia como identidade paradoxal.
Podemos resumir que a burrice é a falta de tempo e a inteligência o excesso, a superabundância, a extrapolação do tempo para nada fazer, pois a utilidade é parte da cena para aqueles que são burros demais para perceber que não fazer nada é o grande sinal da inteligência. A inutilidade, a indisposição em obedecer às ordens heteronômicas, a recusa em viver aprisionado por deveres morais e suas máscaras sociais de gentileza, agradecimento, reverência, benevolência a um sistema que só deseja ser servido com seu tempo, sua soberania, seu conhecimento e sua disposição para a possessividade sem limites até o desencantamento absoluto, em que a soberania se transforma numa prisão, uma prisão cartesiana da razão.

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Mas a percepção do tempo também é fator fundamental para definir a burrice caracterizada pelo apego e a inteligência da aceitação incondicional. Para os burros, e aqui o sentido de burro não é de ignorância, mas de teimosia, o tempo é linear e dicotômico, ou seja, ele é ligado a causas e efeitos e sua percepção da realidade está limitada a seu apego a verdades. Por conta dessa limitação, sempre é contra ou a favor, sempre apegado ao concordo discordo, sempre limitado pela dicotomia. Daí sua teimosia em ver a vida e o mundo como isto ou aquilo. O tempo linear define a limitação da percepção e a dicotomia impede que ele vivencie outras temporalidades.
Para o burro de esquerda, se você discorda certamente é de direita, para o burro de direita a mesma dicotomia e assim os burros zurram suas burrices com um orgulho desconcertante. E todos, para eles, são burros arrematados. O circunlóquio da burrice é infindo. Nesse sentido, para o burro, a dicotomia é o espaço e a linearidade é o tempo. Um vai e vem infinito e permanente num pequeno mundo de certezas. O burro é o dono da verdade. Não existe dúvidas para sua burrice. Grandes burros são professores que ensinam sua burrice às multidões de alunos. Os professores burros acreditam que os que não sabem o que eles dominam existem num senso comum, muito distante do senso acadêmico que legaliza sua burrice coletiva e genérica. Leem livros como se isso atestasse sua inteligência, mas só reforça sua burrice e sua arrogância. O ensinar é da ordem da burrice comum. Os burros ensinam esperando que os alunos aprendam sua burrice partilhada. Gostam de chamar os alunos que não aprendem de burros, mas é apenas força retórica, pois os que aprendem, apreendem a burrice professoral. O autoelogio da burrice é a ostentação do conhecimento instituído, ou seja, tudo que já foi escrito e ensinado e que deve ser aprendido, pois ao burro não existe a possibilidade imaginativa da criação. É um repetidor, um replicador, um ensinador do já sabido. Sua burrice é o circunlóquio da repetição e da reprodução colonial. Como colonizador tem o atestado da burrice e os privilégios de ser burro doutorado.
A teimosia se agarra a verdades e certezas e se defende com a dicotomia, então todos que não aceitam essas verdades e certezas são negacionistas e ignorantes. Não existe espaço ou zonas cinzentas e tudo é preto ou branco, isso ou aquilo, verdade ou ilusão. O mundo colonial é triste em sua configuração, pois o burro detém todo o cabedal de sua convicção e apenas amplia o escopo, sem espaço para dúvidas ou curiosidades. Por isso não precisa da imaginação e vive uma vida na concretude teórica da colonização, crente num mundo já sabido e aprisionado pela eterna heteronomia de sua dependência interior.
O burro empaca porque já sabe tudo, sabe como é a história do mundo, como é o mundo, quais os problemas do mundo e como resolvê-los, então não precisa fazer nada, só ensinar aos outros seu conhecimento indubitável. E pode provar tudo isso, pois está nos livros.
Criatividade não se ensina, inteligência não se aprende. Só aprendemos a ser burros. A reproduzir a burrice colonial. A contemplação instituinte é o afastamento da burrice colonial. Por isso querem todos na escola, pois a escola reproduz a burrice colonial com precisão. Responda a chamada, senta, copie, estude, faça a prova de que aprendeu a lição, continue assim até que toda juventude tenha terminado e serás um burro admirado por todos os burros escolarizados. A admiração da burrice é contagiosa. E no fim o subjecto aprende a ler de tanto baixar a cabeça pra isso. E se transforma num sujeito, aquele que se sujeita à burrice colonial. O mundo colonial é burro porque apenas reproduz o mundo colonial, geração após geração de burros reprodutores e diplomados, o atestado de sua burrice senhorial.
Como a burrice é globalizada no tempo neoliberal, os burros acreditam que são inteligentes e não se dão conta que são apegados sofredores das ausências que a burrice provoca. Sofrer, para eles, é sinal de superioridade e ostentam seus vazios com orgulho de ego infantil. Sofrem pelo planeta, pela humanidade, pelos desvalidos, pelos sofredores. Sofrem e de tanto sofrer imaginam que o sofrimento é o atestado de sua gloriosa natureza colonial. Mas como tudo é colonial, já ultrapassaram essa história e agora são os senhores da metrópole do conhecimento. Sentem-se independentes e não submissos. Já não reconhecem as grades da prisão cartesiana da razão e bradam sua liberdade.
Volto a lembrar que o termo burrice apenas expressa uma teimosia. E se mudarmos o termo, será de superioridade instrumental que deveríamos chamar os senhores da heteronomia, mantenedores do pensamento linear e dicotômico. Desse modo, os burros alfabetizados criam os analfabetos, ou seja, todos que não se alinham à sua habilidade de escrever e de ler e o mundo inteiro se torna dicotômico e linear, suprimindo toda complexidade da vida.
Já a inteligência sente o tempo como espiralar, um movimento que acessa todas as direções sem nenhuma necessidade de sair do lugar. Para que a inutilidade favoreça o sentimento espiralar, imagine uma fogueira noturna e observe as fagulhas que sobem sem esforço pelas correntes de fumo e vento. É uma espiral luminosa encantando a noite sem nenhuma tentativa de sair do lugar. Contemplar essa espiral pode abrir a fronteira entre a boa vida e as limitações da prisão cartesiana da razão. Basta abdicar do pensamento e com ele do julgamento, da arrogância, da soberania, do poder, do conhecimento. Sentir a espiral é a conexão virtuosa a nos ligar a todas as formas de vida que nos cercam, incondicionalmente. E nesse momento ultrapassamos o rubicon, esse rio entre o conhecido e o desconhecido, entre o instituído e o instituinte, entre o familiar e o mistério e o não saber é o ingresso tranquilo no desconhecido, no caos que é imprevisibilidade e paz. Nessa passagem, subitamente, todas as colônias do corpo, todos os nossos corpos, físicos, mentais e espirituais, todas as formas que nos envolvem, tudo se liga, tudo se conecta e tudo tranquiliza no senso comum de nossa existência. Somos novamente terranus, parte dos seres que existem na complexidade, humano-terra pertencente à humanidade compartilhada, simpoiesis de uma cognição sentimental energética que flui entre cada célula viva, aprendendo pelo contágio que a vida é múltipla e una, partes de um todo indivisível além do tempo e do espaço.
Mas ao burro pode existir uma saída, talvez um paliativo contra sua burrice contumaz. O DILETANTE E O PRAGMÁTICO pode encarnar no corpo intelectual do burro e desviar em paralaxe sua arrematada burrice de superioridade. Nem liberdade nem igualdade, dilema dos burros.
Se esse desvio acontece, um leve desvio, uma paralaxe como eu disse, então a heresia começa a se instalar nesse corpo duro do conhecimento.
Uma vez herético, sempre herético. A heresia é a pequena abertura para vislumbrar uma escolha na natureza natural da burrice colonial.
Não é ainda a liberdade, mas é uma fresta por onde podemos ver, lá dentro, vida original.
No limbo entre a burrice e a inteligência mora a autonomia.
Antes é preciso tudo aceitar incondicionalmente.
Se os burros azeitam com o óleo extraído do ego, apenas com o óleo da irreverência a inteligência pode ser restituída. Se o conhecimento é sério pra caramba, a sabedoria é hilária e não se leva a sério para não cair no poço da burrice colonial.
Existe a escuridão absoluta, mas não existe a luz absoluta.
A luz do conhecimento é um copo que nunca se preenche completamente marcada pela falta perpétua, carece de conhecimento para sempre. A escuridão absoluta é o lugar do não saber, onde os seres tateiam pelo mínimo sinal do seu sentir.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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