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Anulação do caso Evandro: áudios mostram que mulher foi torturada por policiais para confessar

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"Confesse direitinho pra nós não botarmos a mão em você mais". Áudios chocantes mostram policiais promovendo sessão de tortura para que acusados assumissem autoria. Eles só pararam quando ouviram o que gostariam. Justiça anulou nesta quinta-feira todas as condenações e Governo do Paraná fez uma carta com pedido de perdão pelas torturas cometidas contra Beatriz. “Eles me ditavam [o que eu deveria falar] e quando eu errava, eles paravam essa fita e ditavam de novo. Se eu errasse, me davam choque de novo. Até sair o que eles queriam”

O Tribunal de Justiça do Paraná decidiu anular nesta quinta-feira (9) as quatro condenações ligadas ao desaparecimento do menino Evandro Ramos Caetano, 6, em abril de 1992, na cidade de Guaratuba, no litoral paranaense, no processo de repercussão nacional que ficou conhecido como caso Evandro.

Por 3 votos a 2, os desembargadores absolveram Beatriz Abagge, Davi dos Santos Soares, Osvaldo Marcineiro e Vicente de Paula Ferreira (morto em 2011). Com base em fitas de áudios que vieram à tona em 2021, a maioria dos magistrados entendeu que os acusados foram torturados por policiais militares para fazerem uma falsa confissão, de que teriam matado o menino.

A absolvição ocorre após um pedido de revisão criminal apresentado pela defesa dos condenados, feita pelo escritório Figueiredo Basto Advocacia. Nesta quinta, os magistrados julgaram procedente a revisão criminal, reconhecendo a tortura, a ausência de provas, absolvendo os acusados e declarando o direito a uma justa indenização.

Beatriz Abagge e sua mãe, Celina Cordeiro Abagge, foram acusadas pelo Ministério Público de serem mandantes de sequestro e homicídio do menino. Outras cinco pessoas foram acusadas de participação no crime, entre elas o artesão Davi dos Santos Soares e o pai de santo Osvaldo Marcineiro.

A acusação sustentava que a criança havia sido sacrificada em um ritual para “abrir os caminhos” para a política e os negócios da família Abagge. Em 2011, Beatriz foi condenada pelo 2º Tribunal do Júri a 21 anos e quatro meses de prisão, pela morte do menino.

Como votaram os desembargadores

Relator do caso, o desembargador Miguel Kfouri Neto votou contra a revisão criminal, sob o argumento de que as novas fitas deveriam ser objeto de perícia oficial. Também disse que o júri que condenou os acusados não teria levado em consideração apenas as fitas com as confissões. O voto do relator foi seguido pela desembargadora Lidia Maejima.

O desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira discordou do relator e abriu divergência, sustentando que as fitas que surgiram em 2021 não podem ser consideradas provas novas, já que elas são as fitas originais. Nos autos, tinham ficado as fitas editadas, ou seja, sem os áudios que revelam a tortura.

Xisto também observa que as fitas só corroboram o que os condenados já alegavam no passado –de que houve tortura– e argumenta ainda que outras irregularidades no processo já seriam suficientes para anular as confissões.

Ele afirma que as prisões dos suspeitos foram feitas antes das ordens judiciais e que eles foram levados para serem ouvidos em locais secretos, sem direito a assistência de algum defensor e sem que o direito ao silêncio fosse apresentado. “Só isso já macula as confissões. Essa conjuntura já seria suficiente para anular os interrogatórios”, disse Xisto.

“Direitos humanos fundamentais devem ser respeitados em investigações criminais. Não há dúvida que houve tortura”, continuou ele. Para Xisto, não há prova nenhuma que os acusados tenham cometido crime.

O voto de Xisto foi seguido pelos desembargadores Sergio Luiz Patitucci e Gamaliel Seme Scaff. Representando o Ministério Público, o procurador de Justiça Silvio Couto Neto disse durante a sessão desta quinta que se trata de um “caso perturbador” e se manifestou a favor da revisão criminal.

“Eles me ditavam e quando eu errava, eles paravam essa fita e ditavam de novo. Se eu errasse, me davam choque de novo. Até sair o que eles queriam”, disse Beatriz Abagge, uma das condenadas.

Os acusados

Celina Abagge, então primeira dama do município;
Beatriz Abagge, filha do prefeito;
Osvaldo Marcineiro, jogador de búzios, pai de santo;
Vicente de Paula Ferreira, colega/ajudante de Marcineiro;
Davi dos Santos Soares, artesão de Guaratuba;
Francisco Sergio Cristofolini, vizinho e dono do imóvel onde Marcineiro morava;
Airton Bardelli, funcionário da serraria da família Abagge.

Os áudios agora revelados

Leia, abaixo, a transcrição de parte dos áudios que foram utilizados na revisão criminal:

Osvaldo: “Foi, foi isso amigo, eu matei”
Interlocutor masculino: “Quem que tava junto com você?”
Osvaldo: [grita] “Aí, pera aí, amigo!”
Interlocutor masculino: “[…] choque.”
Interlocutor masculino: “Quem que tava junto com você?”
Osvaldo: “Então, eu tava sozinho”
Interlocutor masculino: “Não”
Osvaldo: “Tava”
Interlocutor masculino: “Daí, você levou aonde?”
Osvaldo: “Levei no mato e matei”

Beatriz: “Eu não olhei no relógio, e depois era noite”
Interlocutor masculino: “Olhe, menina, eu acho nós vamos ter que continuar na nossa sessão, você não tá querendo falar, né?
Beatriz: “Não! Eu to falando, to falando”
Interlocutor masculino: “Você não tá querendo cooperar”
Beatriz: “Era noite”

Interlocutor masculino: “Tá, quem tava junto?”
Osvaldo: “Tava eu, o de Paula, ela e a mãe dela”
Interlocutor masculino: “E daí, o que vocês fizeram na fábrica?”
Osvaldo: “Levamos a criança pra lá, deixamo…” [fala interrompida por barulho caraterístico de tapa]
Interlocutor masculino: “Heim?”

Interlocutor masculino: “Mas você sabe quanto que foi…”
Interlocutor masculino: “Foi sete”
Beatriz: “Sete milhões. Pronto.”
Interlocutor masculino: “Confesse direitinho pra nós não botarmos a mão em você mais”

Por que essas pessoas foram acusadas?

Evandro, então com 6 anos, desapareceu no dia 6 de abril de 1992, após sua mãe permitir, pela primeira vez, que ele fosse sozinho para casa do colégio onde estudava e ela trabalhava, para pegar um brinquedo e um lanche. A escola ficava a apenas 150 metros da residência.

Vinte minutos depois, a mãe, no entanto, percebeu que o filho não havia voltado, mas acreditou que ele poderia estar na casa de parentes, que moravam por perto. Ela só percebeu que havia acontecido algo errado ao voltar para casa e encontrar a porta chaveada e o lanche e o brinquedo em cima da mesa.

A década de 90 foi marcada por uma série de crianças desaparecidas na região. O medo se instaurou na cidade e em todo o estado.

Um primo da família e ex-investigador da Polícia Civil, Diógenes Caetano dos Santos Filho, passou, por conta própria, a fazer investigações paralelas às dos policiais civis.

O pai dele, Diógenes Caetano dos Santos, foi prefeito de Guaratuba entre 1973 e 1976 e era rival político de Aldo Abagge. Durante muito tempo, Diógenes foi porta-voz da família Caetano na imprensa e era chamado como “tio” do garoto.

Dois meses depois do crime, Diógenes Caetano apresentou ao Ministério Público do Paraná (MP-PR) o dossiê de “magia negra”, acusando, entre outros, o pai de santo Osvaldo Marcineiro e a então primeira dama Celina Abagge.

“O que gerou tudo isso foi Diógenes. Foi ele que veio com a história de que nós matamos a criança. Ele levou aquela ideia dele para o MP, que acatou e já mandou a polícia deles, a P2, para resolver o caso porque eles achavam que o Grupo Tigre tinha sido comprado pela família. Nós sempre achamos que eles fossem achar a criança viva, e o Grupo Tigre também. Mas, o Diógenes já nos primeiros dias foi na minha casa dizendo que a criança tinha morrido, que a gente tinha matado, tirado os órgãos, feito tráfico de órgãos”, relembrou Celina.

Na ocasião, acreditava-se que o ritual tinha sido feito com o objetivo “abrir os caminhos” da fortuna e da política para a família Abagge.

Celina Abagge contou que a palavra dela, da filha e dos outros acusados não importava para as autoridades e que chegou a um ponto que não adiantava mais tentar se defender, apenas obedeciam ordens.

“Não adiantava querer correr, eles invadiram a minha casa, quebraram tudo, arrebentaram tudo. A mesa posta para o café e meu marido pediu ‘cadê o mandado?’, mas não tinha. Foi uma invasão de policiais [do Grupo Águia] na nossa casa para nos prender. Eu fui bem tranquila para o fórum. Chegando lá, esperamos, não apareceu juiz, de repente abre a porta, me puxaram pelo braço. Eu pensei que nós íamos na sala da juíza. Mas não, tinha um carro ali e dali nós fomos sequestradas. Na esquina do fórum havia esse cidadão Diógenes dando gargalhada. Eu olhei para ele e me deu um calafrio”, disse.

Prisões

Osvaldo Marcineiro e Davi dos Santos foram presos em 1º de julho de 1992;
Celina, Beatriz e Vicente de Paula, no dia 2 de julho;
Francisco e Airton foram presos no dia 3 de julho.

A casa da família do prefeito Aldo Abagge chegou a ser apedrejada pela população, que estava revoltada com a confissão do crime bárbaro. A imprensa de todo o país acompanhava cada etapa nova sobre o caso.

Em busca de provas, a polícia esteve na serraria da família Abagge, local do suposto ritual, levou um pedaço da parede, objetos que estavam em um tipo de “capelinha” e foi atrás de outras pessoas que frequentaram o terreiro do pai de santo.

“Pânico satânico”

Após a morte da Evandro em circunstâncias misteriosas, os olhos da comunidade — e também da imprensa e da própria polícia — se voltaram para um grupo de pessoas de hábitos considerados ‘estranhos’ e com práticas religiosas fora do usual.

Rapidamente, com pouca ou nenhuma evidência concreta, chegou-se à conclusão de que o crime fora cometido em um ritual promovido por um culto satânico local.

“O caso Evandro não foi o único. São sempre casos muito graves, porque geram acusações falsas e acabam encobrindo os reais criminosos”, diz Rafaela Barbieri, doutoranda em história pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e especialista em religiosidade e pânico satânico.

Casos de pânico satânico raramente são isolados, diz Almeida. Nos Estados Unidos, por exemplo, esse medo foi sendo construído ao longo dos anos 1960 e 1970, quando famílias conservadoras achavam que estavam perdendo seus filhos para a contracultura e movimentos religiosos alternativos, como Hare Krishna. “Muitos pensavam que os jovens estavam sofrendo lavagem cerebral, esquecendo Jesus e negando as tradições cristãs, afastando-se dos valores familiares”, afirma Francis Moraes de Almeida.

Apesar de ser um dos mais emblemáticos, o caso Evandro não foi o primeiro do tipo no Brasil. Segundo o sociólogo Francis Moraes de Almeida, muitas vezes o pânico satânico foi disseminado por grupos evangélicos pentecostais, a partir dos anos 1990, que faziam confundir estátuas de divindades africanas com representações do demônio.

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