Literatura

As cidades e a coleção de significados

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

As Cidades Obscuras é uma série de álbuns de histórias em quadrinhos franco-belga desenhada por François Schuiten e escrita por Benoît Peeters. O primeiro álbum, “Les Murailles de Samaris”, foi lançado em 1983, o último em 2008 na França.

Não foi, contudo, o primeiro que li.

A ficção científica aqui construída se afasta completamente das utopias ou distopias características do gênero. Não existem poderes totalitários que alimentam sonhos ou opressões. Cada personagem contempla sua existência como uma singularidade.

Nos ajuda a entender melhor sobretudo a grande falácia das narrativas ficcionais envolvendo o futuro. Hoje, quando o empoderamento define a forma como as sociedades são orientadas, fazendo suprimir qualquer poder maior em nome do poder pessoal disponível como direitos conquistados, podemos olhar para o passado e vislumbrar como o futuro foi radicalmente alterado das prédicas elaboradas.

A série se passa em um continente imaginário localizado em um mundo paralelo, em princípio invisível ao nosso, no qual uma multiplicidade de influências se mistura, do surrealismo metafísico de Jorge Luís Borges à literatura de Júlio Verne (principalmente suas viagens extraordinárias). A série destaca os projetos arquitetônicos detalhados de Schuiten para as diferentes Cidades Obscuras, que são, na maior parte, reinterpretações ou versões “sombrias” de cidades reais, como Brüsel, de Bruxelas ou Pâhry, de Paris.

O que impulsiona esses personagens é de outra natureza. Se não ainda o poder para oprimir, aquele poder para impulsionar, num movimento interior que surge pelo mistério e pelo incômodo.

O apelo ficcional que surge das dimensões desconcertantes que são paralelas às nossas é um recurso fundamental para fugir das diretrizes habituais da ficção científica tradicional em que o futuro é um problema ou uma solução. Ao lado habitam estranhas cidades.

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De modo geral, o exercício da ficção científica e seus elementos contém um forte discurso moral sobre o que é bom e o que é mau no futuro. Confesso que sempre tive dificuldade de lidar com esses princípios dicotômicos. Quando encontrei numa banca em São Paulo em 1987 a história Febre de Urbicanda, o segundo livro da série das cidades, fui tocado por sua singularidade substantiva. Uma porta, o álbum, abria outra porta ainda mais inesperada e única.

Os personagens percorrem os mistérios das cidades como aedos, poetas com a imaginação nas mãos, estranhamente maravilhados com o que testemunham, como aqueles que leem essas narrativas gráficas deslumbrantes.

Minha primeira leitura desses universos intrigou a ponto de ficar atento ao que viria a seguir. A edição que li foi de uma editora portuguesa, edições 70 que àquela época poderia ser encontrada em algumas bancas ou livrarias. Alguns anos depois li A Torre, pela mesma editora. Os mundos expandiam fronteiras que minha imaginação não podia alcançar. E dentro da cada um deles, ainda outras passagens inusitadas.

O Arquivista foi o seguinte álbum, numa edição espanhola em formato gigante que tornava a arte um deslumbre visual que não precisava de palavra impressa para deslocar minha percepção. E assim os universos das cidades obscuras foram me transportando para dimensões que jamais poderia imaginar àquela época.

Eu ainda não havia entendido as surpreendentes possibilidades quânticas e vivia num mundo tridimensional deslocado pelo tempo. As cidades obscuras estavam realizando alterações profundas na percepção que eu tinha do mundo linear e plano. E cada provação a esse mundo colonial era uma expansão extraordinária para o desconhecido.

Lembro com nítida alegria de ter encontrado A Menina Inclinada muitos anos depois numa livraria qualquer, em que uma personagem de outra dimensão cai num outro mundo cuja forma habitual a obriga a se mover sempre inclinada. O estranhamento visual dessa história é tão absurdo que pilhas de livros que havia lido baseados no nonsense se tornam diminutos diante da nova percepção.

E assim, cada álbum foi surgindo diante de mim em momentos especiais que me trazem à memória a sensação e o lugar que ocupam na minha vida.

Muito recentemente encontrei nessas novas livrarias virtuais A Sombra de um Homem numa edição americana, cujo deleite não havia diminuído nem um pouco. Abri o pacote recebido com uma genuína emoção de juventude.

A mulher por quem estou apaixonado, vendo como isso é significativo para mim, me presenteou com A Teoria do Grão de Areia, os dois volumes importados de Portugal lançados pela editora Asa.

E assim, recentemente, comprou na Alemanha os álbuns restantes. Depois de quase 40 anos posso ver novamente essa história completa que se confunde também com a história da minha vida.

Vi que recentemente a editora francesa Casterman lançou em 4 volumes muito bacanas a série completa das Cidades Obscuras.

O significado que cada álbum imprimiu é fundamental para explicar essa jornada da minha forma de sentir a coleção e a própria vida como extraordinária. Não é só uma questão de preço, de lombada ou de acesso, é a história em que cada elemento dialoga com o tempo, o espaço e as dimensões e como as pessoas vão participando em cada uma dessas temporalidades de modo especial e único.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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