Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Quiral trata de fenômenos irreconciliáveis.
Geralmente, as hegemonias simulam uniformidades e agregações, mas esse é apenas um sintoma generalista de eventos microscópicos em ondulações dinâmicas e centrípetas que carecem de muita energia para sustentar a superfície.
Um bom exemplo de alastramento hegemônico é o telefone celular. Em pouco tempo se tornou endêmico e atingiu cada ser do planeta com seus benefícios e diretrizes.
Os benefícios são duvidosos e camuflados por ideologias simplórias, como a capacidade de comunicação democrática e generosa. Nunca nos comunicamos com tanta escassez de vontades e nunca demolimos à distância a estatura moral de nossos semelhantes.
Mas a ilusão de que uma tecnologia a nosso dispor é parte de uma evolução no trato social prevalece sobre o terrível e assustador poder de destruir nosso semelhante, de ignorar sua humanidade e de transformar sua jornada numa trilha de objetos e dejetos sobre os quais cobrimos com nossos pés alados.
O reino social se tornou, assim, aparentemente indissolúvel de nosso jardim e o habitamos como reis de um trono solitário e vazio.
Não entendo bem das indumentárias sociais, mas sei que o celular compõe um vestuário que carece de complemento. E num tempo de identidades cruzadas, os homens frágeis passaram a ostentar um tipo muito característico de calças. As calças com cortes em canelas fininhas.
Não sei bem quando essa moda começou, mas sei que agora é global. Homens, velhos, jovens, crianças, todos usam calças apertadinhas na canela. Como se a fragilidade de sua identidade de homem tivesse que ser expressa nas calças.
A elegância foi definitivamente escanteada em nome da fineza do corte, do sapato pontudo e das camisas justinhas, tornando a figura masculina um protótipo deselegante de um grilo.
Essa despersonalização de mau gosto atingiu todos os estratos sociais e uniformizou de presidentes a hipsters, de entregadores de pizza a proprietários de carros de luxo. Até parece que finalmente a igualdade foi conquistada.
Mas é só aparência de hegemonia, pois a quiralidade ocorre sob as calças e há uma irresoluta confusão entre o corte e a perna. Sob as penas fininhas das calças, habitam sujeitos sem alma.
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A panturrilha é nosso segundo coração e apertar sua cobertura simboliza um estrangulamento de energias tão necessárias para um caminhar equilibrado e livre pela vida.
Essa desalmada configuração de trajes que é a expressão da fragilidade masculina em potência, tem um objetivo oculto pela uniformidade, promove uma sintomática reação química da desilusão. Por baixo da fragilidade expressa, a desunião dos indiferentes, a uniformidade dos indiferentes, a sombra da decadência revestida da igualdade estética e nada promissora.
Em química, uma molécula ou íon é chamado quiral se não puder ser sobreposto em sua imagem especular por qualquer combinação de rotações, translações e algumas mudanças conformacionais. Essa propriedade geométrica é chamada de quiralidade.
As calças de pernas fininhas são assim quirais, que em si não podem ser sobrepostos, pois todos são geometricamente iguais, produzindo uma imagem especular de isonomia absolutista. O mundo neoliberal finalmente expressa sua vontade de igualdade da forma mais irônica possível: pela exígua desproporcionalidade das calças, homens de todos os tipos reduzidos a moldes fininhos de calças, sapatos bicudos alçando voos pelas calçadas e um visual sem monumentalidade, sem grandiosidade, sem expressão, apenas a torção minúscula de um inseto que na multidão se apresenta como móbile em deslocamento, uma só forma amiúde sem cabeça, só pernas, só membros.
Se outrora o chapéu havia moldado as cabeças dos homens, hoje as calças definem seu lugar. E é o lugar mais deselegante da história da indumentária.
Mas esse lugar de isomeria ainda espera nossa ida ao trono de deus. E a questão é ainda pertinente. Se nossa força de julgamento que nos permite sem esforço destruir nossos iguais em calças de pernas apertadas, se diante de deus ainda poderemos ocultar nossos pecados acusando nossos semelhantes que perseguimos por uma vida sem trégua. Diante de deus, com nossas calças fininhas, seremos talvez redimidos?
Deus usa pantalonas?
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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