"O luto veio de forma muito brusca porque três vidas, de uma vez, se foram. Foi uma sensação de perda em todos os sentidos"
Camila Corsini, Universa
Renata Campos, de 45 anos, enfrentou duras perdas nos últimos 13 anos. Primeiro, em um acidente de carro, seus pais e a única filha, Victória, de 6 anos, morreram. Em seguida, engravidou de trigêmeos e tentou reconstruir a vida ao lado do marido Marlon, mas, em 2018, um acidente de trabalho matou também seu companheiro.
A Universa, Renata, que mora em Americana (SP), conta sua história de luto e reconstrução.
‘Foi muito rápido’
“Era 12 de novembro de 2010 e estávamos indo viajar eu, meus pais, minha filha Victória e meu sobrinho. Era madrugada, ainda estava bem escuro. Meu pai dirigia, minha mãe estava ao lado dele, e eu na parte de trás com as crianças.
Íamos a um sítio do meu pai no Paraguai pela PR-323, uma rodovia bem perigosa, com muito movimento de caminhão. O motorista de um caminhão fez uma ultrapassagem imprudente e negligente, em faixa contínua. Foi algo muito rápido e traumático.
Ele não prestou socorro e nem ligou para a ambulância porque acho que viu a dimensão do que tinha causado.
Meu pai e minha mãe morreram na hora, foi muito abrupto. Minha filha ainda ficou uns 20 minutos viva, sem socorro. E meu sobrinho sobreviveu também.
‘Me cobrava pelos lutos’
O luto veio de forma muito brusca porque três vidas, de uma vez, se foram. Foi uma sensação de perda em todos os sentidos.
Eles eram meu cotidiano, meu dia a dia. Eu era muito companheira da minha mãe, do meu pai, almoçava com eles todos os dias e levava a Victória para a escola com eles.
A rotina foi quebrada de uma hora para a outra, além das nuances sociais. Minha família era conhecida em Maringá [onde viviam], as pessoas ficaram muito comovidas, eu saía na rua e as pessoas não sabiam lidar.
Você se sente completamente perdido nessa dor dilacerante. A Victória era minha única filha e eu me perguntava: ‘e agora, como assim, o que vou fazer?’. Eles não existiam mais —de um segundo para o outro. Como reconstruir a vida?
Demorei muitos anos nessa dor e até me cobrava: ‘Parece que estou sofrendo muito mais pela morte da Victória do que pela morte dos meus pais’.
Gravidez de trigêmeos
Seis meses depois, engravidei de trigêmeos. Ainda estava convalescendo, e foi uma forma que meu esposo na época, o Marlon, pensou para a gente sair disso: ‘Se a Renata for mãe, quem sabe ela consegue reconstruir mais rápido a vida’.
“Certo ou errado não existe, foi o que foi. Não era para ser três, a gente deu uma ajuda, fiz um tratamento. Foi algo incrível e intenso também, me deu um ar de vida. Estava muito conectada com a morte e vieram três vidas em intensidade”.
Mas, com 33 semanas de gestação, tive de interrompê-la porque um dos bebês estava entrando em sofrimento.
Eles nasceram em 2012 e, na UTI neonatal, o Enrico [o bebê menor] pegou uma bactéria muito agressiva. No terceiro dia de vida, teve de ser intubado. Foram três meses na UTI, com meningite bacteriana, parada cardíaca, transfusão de sangue, cirurgias.
Sofri muito ali também: tinha duas vidas em casa, que dependiam de mim 100%, e ele na UTI lutando para sobreviver. Quando ele saiu da UTI, foram feitos ainda muitos exames, mas ele não teve sequela nenhuma: é igual aos irmãos, tudo impecável.
‘Foi a gota d’água’
Em outubro de 2018, meu esposo sofreu um acidente de trabalho e faleceu, aos 39 anos. Ele dava um treinamento, na concessionária em que trabalhava, com uma carreta carregada com 40 mil quilos de adubo. Em uma descida bem íngreme, a carreta de trás tombou [e o atingiu].
Foi a gota d’água: ou eu realmente transformava isso ou eu não sei o que poderia acontecer.
Meus filhos eram pequenos, estávamos totalmente sem apoio. O Marlon era o único provedor da família, então a perda me trouxe muitas questões: não só a pessoa, que era minha vida, minha rotina, o pai das crianças, mas tudo o que morreu com ele.
Fiquei completamente perdida e engatilhou também todo o passado, os lutos anteriores que ainda não estavam cicatrizados. Não tive tempo para conseguir ruminar a dor e transformá-la.
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Estava indo ladeira abaixo, com raiva da vida, com ódio. Me perguntava: como tudo pode acontecer com uma pessoa só? Você fica com esse sentimento e emoções pairando, totalmente no escuro.
Como ressignificar
Ainda lidava com muitas questões da parte prática e burocrática de indenização. Só tinha eu para lidar com isso, mas várias pessoas me deram apoio.
Um dia, falei a um amigo: ‘Não sei mais o que faço, como sustentar essas crianças, não tenho condições emocionais’. Estava há 10 anos fora do mercado, trabalhava em hospital, mas não consegui voltar depois do primeiro acidente.
Ele me estimulou a olhar por outro viés, me reconciliar com isso de outra forma, não na raiva e no ódio. Comecei a estudar como ressignificar uma questão trágica, um destino duro, difícil e que deixa as pessoas com muitos bloqueios.
Entendi que precisamos acolher [o sentimento] e transformar em algo bom. Não é excluir [o que passou], mas construir algo novo, fazendo a ponte entre um e outro até ser possível estar em paz com o novo.
Hoje, trabalho na área de luto e perdas [ela dá aconselhamento a pessoas que passam pelas mesmas questões]. Minha experiência me trouxe até aqui e consigo ser empática porque perdi pai, mãe, filha e esposo.
Novo casamento
Ainda estava sob o efeito do luto, triste, quando um amigo que mudaria de país me chamou para uma despedida. Decidi ir e foi lá que conheci o Denis. Ele é tecladista, pianista e baterista, e fez uma participação no show da despedida.
Trocamos telefone, começamos a conversar e surgiu uma amizade. Ele tinha perdido o pai recentemente e falamos sobre isso, foi algo gradativo, leve, gostoso.
Ele me apoiou muito, me deu bastante colo neste momento de me permitir um novo relacionamento amoroso. Começamos a namorar e, no ano passado, nos casamos. Ele tem um filho de nove anos, meus trigêmeos vão fazer 12.
É um relacionamento bem fluido em que um complementa o outro naquilo que nos falta: estamos construindo uma nova jornada do zero, um recomeço.”