As contradições na geopolítica e economia não são fenômenos exclusivos do Brasil; pelo contrário, são sistêmicas e se manifestam globalmente, como evidenciado por eventos marcantes neste ano
João Stacciarini*
No cenário geopolítico, a estabilidade é uma raridade. Aqueles que competem pelo poder precisam constantemente conhecer o passado, agir no presente e planejar o futuro. Além disso, em um ambiente caracterizado por fluxos ininterruptos, adversidades e rivalidades têm o potencial de rapidamente frustrar expectativas e desmantelar planos, como bem ilustra o ditado ‘num piscar de olhos’.
O retorno de Lula à presidência do Brasil reacendeu uma de suas marcas registradas: o engajamento internacional. Rotulado de “megalomaníaco” por críticos que acreditam que o foco deveria ser exclusivamente nos problemas internos do país, e louvado por outros que valorizam sua habilidade em navegar no intrincado e competitivo cenário global, o presidente já realizou visitas a 24 países em 15 viagens, totalizando mais de 60 dias no exterior durante seu primeiro ano de mandato.
Entre acertos e desafios, as ambições de Lula colocaram a diplomacia brasileira em destaque nas agendas e noticiários internacionais. Isso se evidencia em suas tentativas de mediar conflitos como Rússia x Ucrânia e Israel x Palestina, além de seu engajamento em temas cruciais como mudança climática, transição energética e discussões econômicas de alcance global.
Aproveitando-se de sua tradicional imagem de “neutralidade” no cenário internacional, o Brasil, sob Lula, procura ser o porta-voz dos países emergentes, um grupo em franca ascensão. Em outubro, na defesa da minha tese de doutorado, destaquei que os nove países dos dois principais blocos emergentes, os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e MIST (México, Indonésia, Coreia do Sul e Turquia), já representam quase metade (48%) da população mundial e aproximadamente um terço (31%) do Produto Interno Bruto (PIB) global.
Além disso, projeções do Fórum Econômico Mundial sugerem que a China poderá se tornar a maior economia mundial até 2028, ultrapassando os Estados Unidos. De maneira coincidente, relatórios recentes do Fundo Monetário Internacional (FMI) indicam que os sete países com as maiores taxas de crescimento econômico para 2023 são membros desses grupos emergentes: Índia (6,3%), China (5%), Indonésia (5%), Turquia (4%), México (3,2%), Brasil (3,1%) e Rússia (2,2%), superando assim os Estados Unidos, países europeus e o Japão.
A abordagem de Lula, oscilando entre confrontos e defesas, aproximações e disputas, busca remodelar a dinâmica geopolítica internacional, sempre fluida, e fortalecer o Brics em oposição aos países já desenvolvidos. O mesmo Brics, atualmente liderado pela China, um país de regime socialista, está prestes a incluir nações com regimes ditatoriais de direita, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes. Este cenário reflete o contemporâneo contexto político, onde as ideologias frequentemente cedem espaço ao imperativo do crescimento econômico.
As decisões e posicionamentos de líderes de estado, especialmente em uma democracia onde o comando é compartilhado, refletem as inerentes contradições do exercício de poder. No caso de Lula, suas escolhas, tanto no âmbito nacional quanto internacional, demonstram um esforço em tentar equilibrar o atendimento às expectativas da base eleitoral diversificada que o elegeu – abrangendo desde grupos em situação de vulnerabilidade socioeconômica até ambientalistas e intelectuais – e o apoio a grandes iniciativas neoextrativistas favoráveis à elite econômica nacional. Exemplos disso incluem a aprovação do maior Plano Safra da história, disponibilizando R$ 410 bilhões para o agronegócio em junho, e a expansão dos projetos de extração mineral e energética. Para Lula, o crescimento econômico é fundamental para vencer eleições, “uma lição” evidenciada pela queda de Dilma Rousseff após a crise econômica de 2014.
Falando em equilibrismo e contradições, parece irônico que Lula tenha sido convidado a participar da OPEP – uma organização que reúne os principais países exportadores de petróleo com grande influência na economia global – na mesma semana em que se emocionou em um discurso na COP 28 ao lado da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva. Esta é a mesma Marina que, contrariando as diretrizes desenvolvimentistas do governo, se posicionou contra a exploração de petróleo na Foz do Amazonas. Diante dos questionamentos sobre a possível saída de Marina do governo, o senador Davi Alcolumbre ironizou, sugerindo que ela deveria estar presente na inauguração dos poços de petróleo na região, uma vez que seria impensável desprezar uma reserva estimada em 30 bilhões de barris.
As contradições na geopolítica e economia não são fenômenos exclusivos do Brasil; pelo contrário, são sistêmicas e se manifestam globalmente, como evidenciado por eventos marcantes neste ano. O prolongamento do conflito na Rússia e a ebulição de casos de corrupção no governo ucraniano levaram uma parcela significativa dos políticos e da população europeia a reconsiderar suas posturas. Muitos agora apoiam a concessão de territórios reivindicados pela Rússia, visando a retomada do crescimento econômico europeu e a normalização da vida cotidiana, fortemente dependente do petróleo e gás russos.
A guerra e as sanções impostas à Rússia também tiveram efeitos surpreendentes em outras partes do mundo, como nos Estados Unidos, que retomaram o diálogo com a Venezuela. Em 2023, os EUA suspenderam sanções à Venezuela em busca de petróleo para sustentar seu crescimento econômico, reduzir a inflação e fortalecer a difícil campanha de reeleição de Joe Biden, visando evitar o constrangimento para os democratas que seria o retorno de Donald Trump ao poder na próxima eleição.
No Oriente Médio, a recente escalada do conflito entre Israel e Palestina gerou intensas discussões nas redes sociais, enquanto imagens chocantes de violência e mortes de inúmeros inocentes alimentaram a cobertura fervorosa da mídia internacional. Enquanto a religião aparece, superficialmente, como um elemento central, a geopolítica e a economia desempenham papéis cruciais nos bastidores, moldando o conflito de maneiras complexas.
O Catar, país acusado de comprar o direito de sediar a última Copa do Mundo através de corrupção, conforme indicado por documentos públicos, desempenhou um papel na negociação da libertação de reféns de ambos os lados do conflito. Além de sua boa relação com os Estados Unidos, o Catar é conhecido por financiar o Hamas. Paralelamente, o país investe em estratégias de “soft power”, evidenciadas pelo seu controle sobre importantes entidades globais como o time de futebol Paris Saint-Germain, a emissora Aljazeera e a companhia aérea Qatar Airways.
Um dos fatores geopolíticos que reacendeu o conflito foi a possível ratificação de um acordo mediado pelos Estados Unidos entre Arábia Saudita e Israel. Essa mesma Arábia Saudita que convidou Lula para a OPEP. O mesmo Lula que agora enfrenta o desafio de harmonizar as relações entre os novos membros potenciais dos BRICS, como o Irã (principal aliado e financiador do Hamas) e a própria Arábia Saudita (envolvida no acordo com Israel e Estados Unidos), além dos Emirados Árabes Unidos.
Este último, em um gesto de aproximação com Lula, aceitou extraditar Thiago Brennand, o “plaboy” brasileiro acusado de crimes graves contra diversas mulheres, diretamente de um hotel de luxo em Dubai. Não nos esquecemos da Argentina de Javier Milei, recentemente aprovada para entrar nos BRICS e que agora apresenta hesitação quanto à sua adesão. Milei, que anteriormente havia prometido romper relações com diversos países caso fosse eleito, já tomou a iniciativa de enviar cartas de reconciliação para a China e o Brasil…
Meu Deus! É melhor parar por aqui, essa coisa de política é realmente complexa!
Vou esperar 2024 para tentar entender melhor!
*João Stacciarini é professor e Doutor em Geografia.
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