Síndrome é tão rara que atinge apenas 2 a 5 pessoas a cada um milhão no mundo e médicos têm dificuldade para realizar diagnóstico
Taíssa Stivanin, rfi
A Síndrome Hemolítico Urêmica Atípica (SHUa) é tão rara que às vezes os próprios médicos têm dificuldades em diagnosticá-la. No Brasil, o Comitê de Doenças Raras da Sociedade Brasileira de Nefrologia (Comdora) divulgou em 2022 o primeiro relatório sobre a doença, que atinge entre 2 e 5 pessoas a cada um milhão, em todo o mundo.
Foi o caso da nutricionista Pamela Notario, 37 anos, de Rondonópolis, que descobriu que tinha a doença em 2018. Ela foi diagnosticada durante a faculdade, após desistir da carreira de professora de Direito, e conta que o caso foi tão fora do comum, que chegou a ver 39 médicos dentro de sua UTI. “Me senti num zoológico”.
Maioria são jovens mulheres
Um relatório coordenado pela nefrologista Maria Helena Vaisbish, do Hospital das Clínicas de São Paulo, mostra que 56% dos pacientes são jovens mulheres de cerca de 20 anos, que apresentam insuficiência renal.
“Trata-se de uma doença ultrarrara. Para você pensar em uma doença rara, tem que ter ouvido falar dela. Muitas vezes a gente acaba se deparando com casos em que os profissionais não têm ideia do que seja essa patologia”, explica ela.
Segundo Vaisbish, muitas vezes as equipes se deparam com pacientes em estado grave, com alterações sanguíneas e renais, sem ter ideia de que os sintomas possam estar relacionados à síndrome.
A SHUa altera as proteínas do chamado sistema do complemento, que atua nas defesas do organismo. Ela desregula algumas das proteínas codificadas por um grupo de genes, explica a nefrologista.
“Nessa doença, existe uma exacerbação da reação natural, que é a defesa do organismo. Ela acaba levando a uma lesão celular na parede do vaso sanguíneo e à formação de trombos dentro das células. O paciente terá então anemia e perda de plaquetas”, descreve Maria Helena Vaisbish.
“Forma-se uma espécie de coágulo dentro dos vasos sanguíneos, impedindo a oxigenação adequada dos órgãos irrigados por esses vasos, levando a uma deficiência do funcionamento deles. Um dos fatores observados em quase 100% dos casos da SHUa é a lesão renal aguda”, explica a médica brasileira.
Comeu um lanche e acordou com inchaço
Antes de descobrir que tinha a SHUa, Pamela pegou uma pneumonia que se tornou crônica. “Os médicos diziam que era coisa da minha cabeça, que eu não sarava porque não queria e tudo isso era emocional”, diz.
Até que um dia ela saiu com o marido para comer um lanche e acordou no dia seguinte com muito inchaço. A nutricionista pensou que fosse uma alergia e foi para o hospital, onde a informaram que seus rins não estavam mais funcionando. “Fui do Pronto-Socorro direto para a UTI”, lembra.
Pamela foi então transferida de Cuiabá (MT), onde estava morando, para São Paulo, já que seu quadro piorou e ela corria risco de morte. “Fomos de UTI aérea para São Paulo e o diagnóstico também demorou. Precisei de hemodiálise e troca de plasma, e acabei tendo o diagnóstico da síndrome”, relata.
A questão emocional é muito forte. Os médicos te tratam como um estudo de caso. Lembro de uma cena que me marcou muito. Eu estava no quarto, na UTI, e chegaram 39 médicos. Eles conversavam como se eu não estivesse ali. Eu me senti como um bicho de zoológico.
A nutricionista demorou seis meses para retomar uma vida normal após o diagnóstico. Neste período, o cansaço a impedia de trabalhar e estudar, mas ela diz que tem sorte: sua função renal voltou aos poucos, mesmo antes de iniciar o tratamento com a medicação injetável, a cada 15 dias. A molécula é fornecida pelo seu plano de saúde, mas também está disponível no SUS.
Como detectar?
É essencial, diz a especialista, que exames sejam feitos antes de qualquer intervenção médica, já que não existe, por enquanto, um teste diagnóstico específico.
O exame que detecta os genes alterados e envolvidos no desenvolvimento da patologia mostra que a doença pode estar presente em cerca de 60% dos casos, segundo a nefrologista, e demora cerca de um mês para ficar pronto. Como a patologia é uma emergência médica, não é possível aguardar o resultado dos laudos.
“É uma doença que ainda está sendo mapeada no mundo, inclusive em relação às alterações genéticas. Existe muita necessidade de esclarecimento sobre a SHUa e seus diagnósticos diferenciais”, reitera Vaisbish.
Neste contexto, a identificação da patologia é essencial para que a função renal seja preservada e também para evitar o recurso crônico à hemodiálise e às vezes até ao transplante renal. Mas a doença não se restringe aos rins. Os pacientes também podem ter sintomas gastrointestinais, cardiovasculares e até cerebrais.
Gatilhos e tratamentos
A boa notícia é que, se for diagnosticado a tempo, o paciente fica protegido das complicações. O tratamento é feito com anticorpos monoclonais específicos.
Nos adultos, a SHUa pode se manifestar de várias maneiras e existem diferentes gatilhos, como a existência de outras doenças autoimunes, gravidez ou até cirurgias.
Em muitos casos como o de Pamela, os pacientes não têm acesso gratuito aos remédios, que são muito caros, e acabam ficando dependentes da hemodiálise. Alguns chegam até mesmo a mudar de país. “É difícil lidar com essas doenças invisíveis. As pessoas não entendem o que é você estar sentada e cansada, e precisar deitar. A fadiga é extrema”, diz Pamela.
Hoje ela não precisa de hemodiálise e vive normalmente. Ela tem seu próprio consultório e diz que, apesar do cansaço que às vezes surge alguns dias depois de tomar a medicação, mantém suas atividades e diz que busca transformar sua experiência em algo positivo. Ela trabalha para divulgar a doença e é representante do Brasil no Conselho Internacional sobre a doença.
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