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Primal, quando a imaginação acessa o mundo anterior à soberania humana

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Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político

A soberania humana foi engendrada a partir de certos elementos que convergiram para uma forma de imaginar a realidade a partir de um centro.

Essa imaginação promoveu uma idéia, uma ideologia que tinha por sentido centralizar no homem a faculdade única de se ancorar na razão como centro irradiador de princípios não humanos.

Claro está que tais princípios recusavam o lugar do humano-terra no ciclo vital, em que não havia hierarquia entre humanos e as outras formas de vida. Poderia haver simbiose, partilhamento, diferenças, mas não desigualdade.

A idéia de que o homem detinha a exclusividade de uma habilidade determinista que ele próprio denominou de razão, autorizava a tomada de decisão a partir desse centro que dominava toda a natureza, pois a razão o separava desta em nome de um pedestal de poder.

O centro irradiador passou de deus ao homem e deste à sua racionalidade e a partir dessa altitude imaginária, desceu à terra escalonando primeiro os homens, depois as mulheres, depois as crianças, depois os animais, depois a própria natureza, vinculando quem voluntariamente se colocava como servidor esperando sua vez de dominar e oprimindo os seres que não articulavam pela força organizada que refazia o mundo à sua imagem e semelhança.

Mas essa história precisa ser encarada em sua própria historicidade, qual seja, que o momento da centralização inventou uma história que promovia uma ruptura na natureza e jogava para traz no tempo de origem exatamente a mesma ideologia, de que o homem sempre foi o soberano no planeta, sempre oprimindo ou se responsabilizando pela evolução que lhe era cabido pela razão. Pois para os ideólogos dessa primeira usurpação, a razão sempre estivera na mente do homem, distinguindo-o de outras espécies vivas.

Primal é uma série animada da televisão americana criada por Genndy Tartakovisky e apresentada a partir de 2019, contendo três temporadas, mostrando Spear e Fang na luta pela sobrevivência num mundo pré-histórico repleto de criaturas mortais.

O núcleo da série gira em torno de dois personagens, Spear, um neandertal cuja parceira e filhos foram devorados por um grupo de tiranossauros vermelhos com chifres. Em sua busca por superação da perda, o homem encontra outra família de tiranossauros verde-azulados, cuja fêmea, Fang, foi atacada pelos mesmos tiranossauros que devoraram a família de Spear, que também devoram os filhos de Fang. Estas duas criaturas improváveis se aproximam pela perda comum, encontrando um profundo vínculo que representará uma união sem que nada indique a superioridade de um sobre o outro, apenas a conexão isonômica que oferece respeito, proteção, partilhamento.

Uma serie de histórias mudas que enaltece o que os aproxima e não o que os separa. Sem uma palavra trocada, sabem o que precisam na teia gestual da convivência.

Qualquer um que já conviveu respeitosamente com um animal ou com uma planta entende a necessidade apenas pelos gestos proximais.
Essa imaginação é suficiente para derrubar a torre de babel em que transformou a modernidade colonizadora, operando a partir da mente e que, se suprimida da relação, promove imediatamente conexões virtuosas para uma forma de autonomia plena no interior da convivência.

Claro que para essa discussão acerca da soberania humana fundamentada na racionalidade carecemos de uma definição para inteligência.
A ideologia da modernidade considerou que a privatização do conhecimento socialmente produzido por um determinado grupo lhes garantiria um lugar de superioridade em relação não só aos outros seres vivos, mas principalmente em relação aos outros humanos diferentes que foram paulatinamente habitando os lugares mais baixos da hierarquia social.

Mas essa forma de inteligência é apenas uma, fundamentada pelo conhecimento, um artefato de produção de discursos e de hegemonia que opera sempre a partir do centro.

Einstein já havia considerado que sinal de inteligência não é conhecimento, mas imaginação. A partir dessa premissa, poderíamos identificar inúmeras formas de inteligência espalhadas por todos os seres vivos. No caso específico de Primal, a inteligência exercida opera a partir da convivência. Chamamos essa inteligência de comunal, que atualmente chamamos de complexidade, cujo significado é fazer juntos. Todas as soluções para problemas e contingências são realizadas sem um único discurso, apenas pela ação da convivência. Basta um olhar e os dois seres se confundem na reação e avançam, destemidos, para eliminar o problema.

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Os seres admitem inteligências diversas tantas quantas necessitem para enfrentar os problemas e adversidades que lhes advêm. Não há primazia para que a habilidade da inteligência, que é em si celular, é emergente, é uma solicitação do corpo vivo de uma humanidade compartilhada, operando a partir do interior mais virtuoso do corpo, sem nenhuma necessidade de domínio ou de expressão.

Em Primal, quando entendemos a conexão entre seres diferentes sem nenhuma necessidade de explicação, também entendemos que fomos jogados no mesmo círculo virtuoso da compreensão sem autoridade, sem superioridade alguma e sem poder.

Por isso separo estrategicamente a palavra relação da palavra conexão. A relação só é possível num mundo colonial, em que os seres estão sujeitos aos abusos do poder central. A realidade da vida vivida é outra. As conexões são ocasionais e estão disponíveis a cada ser, tenha ele o tamanho que tiver, a esperteza que acha que garantiu ou a perfeita sensação de que a diferença jamais pode ser confundida com a desigualdade.

Na separação homem-natureza, a resultante foi a submissão da última em relação ao primeiro. Mas na realidade, essa separação é apenas ideologia, ainda que a força dessa ideologia tenha cooptado muitos humanos que se sentiram superiores ao resto do mundo.

O encontro respeitoso com o outro, seja ele quem for, é o encontro entre diferenças apenas. Entre eu e uma formiga há apenas a diferença que podemos, eu e ela, considerar e nada mais. E quem determina o meu lugar no mundo sou eu, exclusivamente. Isso tem implicações importantes, pois posso recusar simplesmente a soberania e me transformar naquilo que sempre fui, um humano-terra que vive entre humanos-terra, em suas formas humanas, animais, vegetais ou microscópicas. Essa é a única determinação que posso considerar, a que diz respeito exclusivamente a mim mesmo.

Fui jogado na colonização e fizeram comigo o que bem entenderam, pautados na idéia de que eu não poderia reagir, que assumiria a posição indigna do colonizador do outro, mas recusei esse papel, pois estou ligado aos vivos e não aos mortos que ostentam orgulhosamente suas insígnias de poder e vaidade.

A vida é uma vibração que só pode ser vivida com o livramento das armaduras do poder colonial, com o abraço aos vivos sem suas formas diversas e com a percepção do nosso tamanho no universo.

*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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