Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
O panteão das histórias em quadrinhos é vasto, mas seus roteiristas mestres são bem escassos. A grande maioria é medíocre e burocrático, pois é a produção que conduz a sobrevivência.
Dentre os poucos mestres da arte do roteiro para quadrinhos precisa conter o nome do paraguaio Robin Wood.
Não faço listas, mas admiro Oesterheld como referência. E Robin Wood lhe faz parelha.
A arte do roteiro exige um tipo muito especial de inteligência. E essa inteligência precisa ser treinada no labor da escrita.
Não é apenas o tema, que deve ser intrigante como promessa, mas a condução, os diálogos, a narrativa que se gruda no leitor como um compromisso inadiável.
O artista deve ser digno de um bom roteirista, pois o roteiro sozinho é inútil e apenas vaga pelo limbo da criação.
O roteirista refina a história até que apenas o essencial seja divulgado. Para isso, sua vida é o experimento necessário, mas não suficiente.
Depois de vagar por empregos diversos no território da New Australia onde a família de Robin Wood imigrou em busca da utopia comunista no interior do Paraguai que, como tantas outras experiências comunistas na América, encontrou nas disputas internas o seu melancólico fim.
Com seu nome inspirado na história da justiça pretérita, Robin Wood abandonou seu akubra para cair na real e foi trabalha de lavador de pratos, de cortador de lenha, de caminhoneiro que o levou até a Argentina encontrar seu destino de escritor.
Como correspondente do jorna El Território, Robin entrou em contato com o efervescente mundo dos quadrinhos que nesse período resultava num único exemplar de uma revista média vender 500 mil unidades por semana. Seu faro logo o levou até a editora Columba, publicando, com Lucho Olivera, Aqui, La Retirada, uma história que rapidamente o levou ao encontro dos editores da revista D’Artagnan e ao posto de um dos maiores escritores de quadrinhos da América Latina.
Seu faro especial selecionou já de saída a grande obra que marcaria sua trajetória.
Nippur de Lagash tem início em 1967, com seu parceiro Olivera e revela seu apuro na escolha do tema.
Na antiga Mesopotâmia, a história se escrevia em tábuas de argila. Uma dessa tábuas contava a história de Nippur, o soldado que abandonou Lagash para seguir os caminhos dos homens, que compartilhou a mesa com príncipes e com mendigos, que ganhou reinos e os perdeu em combate, que viveu, amou e sofreu. Sim, na antiga Mesopotâmia, a história se escrevia sobre essas tábuas de argila, inclusive a de Nippur, que foi escrita com o sangue de sua própria lenda.
Esse potencial de infinitas variações resultaria numa das histórias mais longas publicadas em 64 volumes de 200 páginas cada com um nível de criatividade que encanta os apreciadores da imaginação.
Mas sua inventividade estava muito adiante dessa grandiosa produção.
Uma forma de produzir metanarrativa entre texto e imagem seria reproduzida também em obras como Gilgamesh, o Imortal, também com Olivera, Dennis Martin (1967), Dago (1980, com Salinas), Savarese (1978, com Mandrafina), Mark, Big Norman, Martin Hel, Merlin, Wolf, Morgan, Dax, Los Amigos, El Cosaco, Aqui la Legión, Mojado, Helena, uma quantidade impressionante de quadrinhos com o nível de quem começou a escrever já pelo lugar mais alto da criação.
Com Carlos Vogt, outro monstro do traço, produziu quadrinhos de humor, Pepe Sánchez e Mi novia y yo.
Sua originalidade funcionava de modo permanente, como quem tira terra de um buraco sem fundo.
Em suas obras, passeia pelas mitologias mais variadas e em cada um produz um elo de verossimilhança a que o leitor não consegue se desvencilhar.
Suas histórias ainda hoje conservam a impressão de que foram feitas nesse tempo, tamanha sua perspicácia. Sem nunca estar datada, embora transcorram nesse lugar mítico em que a imaginação parece fazer morada.
Vencedor do Yellow Kid, Robin morou na Dinamarca, retornando para o Paraguai já no fim da vida, onde morreu aos 77 anos em 2021.
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Em seu texto “quadrinhos de aventuras no Brasil e na Argentina: quando o extraordinário se torna cotidiano”, R.E.Santos e Laura Vasquez assinalam outra das características de Robin Wood, a permanência no jogo instável da impermanência:
“Da mesma forma e de maneira paradigmática, Nippur, o personagem mais popular do roteirista Robin Wood e do desenhista Lucho Olivera, foi batizado de El Errante, o guerreiro de Lagash, Suméria, antigo país da zona meridional da Mesopotâmia, que está condenado a vagar por um mundo mítico e legendário sempre às portas da morte e à espreita dos inimigos. Expatriado, profético e galante (embora não apaixonado), Nippur sempre consegue fugir da rotina. Os anos passam e o herói se torna consciente de que suas experiências não podem ser executadas fora da continuidade da “vida”. Para permanecer indiferente ao antes e depois deve parar o tempo”.
Esse nível de complexidade não está disposto a qualquer um. É preciso reconhecer que os elos de conexão estão além do tempo, inscritos numa memória misteriosa que é preciso ser inventada.
Essa memória havia sido instada quando, em 1893, os primeiros australianos chegaram ao Paraguai, ainda sob o eco das palavras de Willian Lane, que os convencera a estabelecer uma sociedade igualitária para que “servisse de exemplo para os trabalhadores do mundo e fosse um exército disciplinado para conduzir os trabalhadores ao socialismo”.
Mas a permanência nesse mundo utópico encontrou um surpreendente inimigo: a depressão pela impossibilidade dos tosquiadores de ovelha. Na nova colônia não havia as ovelhas que marcara toda uma existência comunal. E a nova doutrina prescrevia moderação quanto à cobiça da mulher alheia e impedia o consumo de álcool.
A primeira experiência prática comunista do mundo fracassou, mas inundou a mente de Robin Wood na construção de Nippur, esse ser errante que busca sempre a aventura para não se estabelecer em lugar algum, apenas na imaginação.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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