Temos como certo que o que diferencia o humano colonizado de todas as outras espécies vivas é seu conhecimento da morte. Mas isso é uma grande bobagem. Não sabemos que vamos morrer, pois se soubéssemos, não poderíamos viver no egoísmo, na vaidade e no conflito gratuito da competitividade. Ignoramos solenemente a morte, por acreditarmos que viveremos para sempre, que de fato somos imortais.
E a imortalidade é nossa eficiência em transmitir aos nossos filhos os mesmos valores destrutivos que nutrimos uma vida inteira.
Louvamos a desumanização do humano a cada segundo do dia. Com julgamentos, condenações, preconceito, uso do poder.
Fora do mundo colonial, os seres respeitam a morte. Todos os seres, não só os humanos-terra de uma humanidade compartilhada.
Os Lakota cunharam a expressão Hoka Hey com um sentido pleno de solenidade: hoje é um bom dia para morrer!
Para nós, que cremos na imortalidade, precisamos desistir de viver pra sempre em nome de um tipo de dignidade honesta que nos lembre, a todo instante, que não vale a pena prolongar a vida com o poder. Abraçando a potência vital, encaramos de frente a sempre presente possibilidade da morte.
Essa sabedoria equaliza nossa jornada com a recusa da cobiça, pois não podemos nos fiar na busca pela falta recusando a plenitude.
Estamos diante de dois tempos: cronos e cairós. Sendo que cronos é o tempo linear dos colonizadores enquanto cairós é o tempo de deus.
A cosmogonia Lakota traduz com surpreendente clarividência o papel do ser no cosmo.
“Cada um de nós foi colocado neste tempo e lugar para decidir pessoalmente o futuro da humanidade. Você acreditava que estava aqui para algo menos importante?” – Arvol Looking Horse, chefe da nação lakota.
Essa implicação é de fundamental importância, pois cada ser está num ponto que afeta toda humanidade. E aqui tratamos de humanidade compartilhada, não a forma colonial que estamos habituados a conceber como soberania humana pautada pela razão.
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
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Se o tempo linear e dicotômico de cronos sacrifica o presente em nome do futuro, o tempo cairós refere-se a uma ocasião indeterminada no tempo em que algo especial acontece. E isso sempre é no presente. O momento oportuno do acontecimento significativo. Mas é preciso sentir o momento.
Toda a vida está coagulada no presente, no instante.
É o deus Ikitomi da sabedoria máxima Lakota, em forma de aranha a tecer os sonhos para que os ciclos vitais cumpram cada esfera para o recomeço. Cada dia um recomeço, cada vida um recomeço, de tal sorte que nada exaure, nada termina, nada começa. O símbolo feito com o ramo do salgueiro, pelo de cavalo, plumagem de pássaros, contas e objetos pequenos, trançado respeitando um buraco no meio, para reter os sonhos bons e vazar os maus. Um filtro. O início e o final se encontram.
Então não avançamos para a frente, mas para o final que é o recomeço. E isso continuamente, a cada dia.
A morte não é o contrário da vida, mas o contrário do nascimento, o fim do ciclo reiniciado com o nascimento.
A atitude de anular as influências de cronos e a opção por cairós, nos afastando do tempo linear e dicotômico e abraçando as maravilhas do presente é um passo importante para viver segundo um código muito específico que os Lakota traduzem por Hoka Hey, ou seja, “aprendendo a morrer”.
Cientes de que a morte está presente, não desperdiçamos tempo com bobagens, com vaidades, com cobiça e com uma falta que de fato não está em nós, mas nos apegos da realidade colonial.
A vida no presente também restitui um princípio de que tudo que vive é nosso próximo e de que não podemos negligenciar sua existência em nome de nosso ego.
Ikitomi explica que em cada etapa da vida existem muitas forças agindo em diferentes direções. Umas são positivas e outras são negativas. São contingências que precisamos voltar nossa atenção para reconhecer, já que nem sempre o bom parece bom, nem o mau é visto como algo mau.
Os juízos morais coloniais são inválidos para esses sentimentos que podem nos conduzir à vida boa. Apenas internamente, com o sentimento, podemos intuir tais diferenças.
O poeta Horácio anunciava Carpe Diem, quam minimum crédula postero, ou seja, aproveita o dia e confia o mínimo possível no amanhã.
Já o poeta do vinho islâmico do século XI, Omar Kayyam, advertia que “o Acorão, o livro supremo, pode ser lido às vezes, mas ninguém se deleita sempre em suas páginas. No copo de vinho está gravado um texto de adorável sabedoria que a boca lê a cada vez com mais delícia”.
O tempo presente representado pelo vinho é seu momento único e irrepetível. Por isso sua máxima “nunca, por um momento sequer, deixe sua taça sem uso! O vinho mantém entretidos o coração, a fé e a intuição”.
A concepção da morte presente faz com que a vida seja plenamente vivida, sem os entulhos materiais que lentamente tecem um sarcófago de ilusões para o futuro.
Agora, um vinho, um bom charuto, um amor trazem o infinito num instante.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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