Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
Minha neta de três anos começou a mostrar o dedo do meio pra todo mundo.
É um gesto completamente inovador no dedo de uma criança, uma menininha dotada de completa irreverência.
Os pais aceitaram, mas foram condenados pela pequena sociedade a que a menina está inserida.
Eu sou o único que aciona o mesmo dedo para ela. Quando reprimem o gesto, ela diz, meu avo também mostra o dedo dele. Bom, aí a coisa complica. Ela não se importa, eu não me importo.
Mas percebo que as pessoas não sabem o significado desse gesto. Consideram que seja algo pornográfico ou sei lá o que. Mas mostrar o dedo vem de um tempo agora distante das tribos que viveram no território europeu antes mesmo que esse fosse o nome agora atribuído.
Venho das velhas tribos etruscas da Calábria e tenho o mesmo sangue bárbaro dos arqueiros que corre nas veias dela.
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Nesse tempo ancestral, as lutas tribais ocorriam com armas elegantes, em que a proximidade era uma condição, com exceção do arco e flecha.
Eficiente para manter os inimigos ocasionais a distância, o manuseio dessa arma carecia precisamente do dedo do meio para a mão que estende a corda.
Não dá para garantir precisão sem esse dedo especificamente.
Claro que quando um arqueiro era aprisionado pelas hostes inimigas, como havia indignidade em matar os prisioneiros, o dedo era amputado para anular ações futuras de hostilidade.
O resultado é que quando havia os confrontos, todos que tinham o dedo mostravam aos seus contendores como um orgulho e uma forma de ameaça e perigo.
A questão é como um gesto de dignidade e altivez se transformou numa provocação sexual.
Não existe resposta para isso, mas posso inferir que o surgimento da modernidade e do indivíduo tenha contribuído com essa modificação, pois se nesse passado ancestral a guerra tribal mobilizava coletivamente os seres, que estavam sempre ligados pelo sexo, já que a prática sexual livre de moralidade é elemento agregador de uma vida plena, a modernidade colonial se fundamentou exatamente no contrário, moralizando o sexo, castrando a potência para melhor imprimir no indivíduo isolado as características brutais do apego, da inveja e do ódio.
O dedo da dignidade, por sua vez, recolheu sua história para ser convertido no dedo da ofensa sexual, como quem diz ao outro indivíduo: vá gozar, canalha!
Mas minha neta não sabe dessas coisas e há nela uma herança atávica que ainda vibra as velhas hostes tribais e quando ela aponta aquele dedinho de menina, está dizendo, eu sou irredutível.
E esse velho avô rebelde se alegra de que o sangue ancestral esteja vivo ainda num dedo de dignidade que resiste.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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