"Gastei todas as minhas economias para viajar e me expulsaram de forma humilhante, como se eu fosse uma bandida". Javier Milei usa tese da ditadura para expulsar brasileiros da Argentina. Novo governo passa a restringir o acesso de estrangeiros, depois de décadas de uma abertura que levou milhares de brasileiros a se instalarem no país
Amanda Cobrim, TAB
A Argentina do presidente Javier Milei começa a restringir o acesso de estrangeiros, depois de décadas de uma abertura que levou milhares de brasileiros a se instalarem no país vizinho para estudar de graça nas universidades públicas. Ao menos 10 mil brasileiros são universitários na Argentina, numa comunidade de 90 mil residentes, aproximadamente, segundo dados do Itamaraty de 2022.
Relatos de quem chegou ao aeroporto de Buenos Aires, mas foi mandado de volta para o Brasil, sob a alegação de que se tratam de “falsos turistas”, têm se repetido nos últimos dois meses.
Desde 2004, Brasil e Argentina possuem um acordo bilateral que permite aos cidadãos dos dois países um status especial e direito de permanecer em solo estrangeiro por até 90 dias — podendo ter o prazo prorrogado por mais 90 e o direito de iniciarem suas residências, se assim desejarem, explicou o advogado especialista em questões migratórias Diego Morales, do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina.
O acordo do Mercosul, assinado em 2002 e em vigor desde 2009, também facilita a circulação e permanência dos residentes de países como Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, e as demais nações agregadas, sob a facilidade de tramitar a residência provisória para depois ascender à permanente (no caso de brasileiros, pelo acordo bilateral, a residência é permanente direto). O objetivo é ajudar na integração dos residentes desses países que estão autorizados a circular pelos integrantes do bloco por um período de 90 dias, prorrogável por mais 90. É nesse período que muitos brasileiros, por exemplo, iniciam o trâmite de residência.
Foi por essa razão que Natália (nome fictício), de 22 anos, desembarcou sozinha no Aeroporto Jorge Newbery, em Buenos Aires, em 30 de janeiro de 2024. A jovem imaginou que seria um dia marcante pois estava cada vez mais próxima de fazer graduação em Artes em Buenos Aires. Mas ainda sem conseguir ver o Obelisco, a jovem foi comunicada no aeroporto que não ia poder entrar no país.
“Como falsa turista? Eu vim estudar artes, tenho minha matrícula na faculdade, hospedagem na residência estudantil, todos os documentos, cartões de crédito, tudo”, disse Natália aos agentes de migração. Mas não teve jeito.
“Me colocaram num avião e não me deixaram saber o número do voo. Me fizeram sentir uma bandida. Foi muita humilhação. Era meu sonho. Todas as minhas economias foram para estudar na Argentina”.
Muitos brasileiros vão estudar medicina, principalmente, em universidades reconhecidas mundialmente como a Universidade de Buenos Aires. O país oferece educação gratuita a qualquer estrangeiro cuja residência esteja tramitando ou já tenha sido aprovada, sem o vestibular tradicional do Brasil — o que atrai milhares de brasileiros o ano todo. Até hoje, seguiram para o país vizinho pela facilidade de acesso que um acordo bilateral garantiu aos cidadãos dos dois países, o que inclui morar, trabalhar ou estudar.
A matéria apurou que, num grupo de brasileiros impedido de entrar no dia 30 de janeiro, duas pessoas disseram à migração argentina que foram estudar nas universidades do país; outras duas afirmaram que foram fazer turismo. Os quatro não tiveram permissão para entrar — além da classificação como “falsos turistas”, também receberam como justificativa “documentação insuficiente”.
As expulsões, no entanto, não param por aí. Semanas antes, outros brasileiros também foram impedidos de entrar. No dia 1 de fevereiro, a jovem Liana, de 18 anos, que embarcou para a Argentina para estudar, foi impedida no aeroporto de Buenos Aires sob a alegação de “falso turista”.
Carlos, que estava no grupo que foi expulso no dia 30 de janeiro, disse que informou aos funcionários da Imigração que viajou a turismo e apresentou o passaporte e RG. Mesmo assim, foi impedido de entrar por não ter uma passagem de volta. Na carta de expulsão que recebeu, o motivo alegado foi falta de documentos.
“Foi uma situação humilhante. Me senti como um bandido. Nunca vivi isso na minha vida. Eu tinha todos os documentos e mesmo assim alegaram que tinha que ter passagem de volta. Não me deixaram ligar para ninguém e eu só podia ir ao banheiro escoltado”.
A advogada Liziana Rubim classificou o caso do grupo de brasileiros expulsos no dia 30 como xenofobia, algo difícil de provar porque o flagrante foi numa conversa informal e sem testemunhas. “O funcionário de migrações disse na minha cara que recebeu ordens de cima e que eles não querem estudantes latino-americanos”, disse a advogada.
Qualificação usada na ditadura
A qualificação de “falso turista” foi usada nos anos 1980, na ditadura militar argentina, explicou o advogado especialista em questões migratórias Diego Morales, do Centro de Estudos Legais e Sociais da Argentina. Trata-se de uma regra anterior à Lei de Imigração de 2002 e ao acordo entre Brasil e Argentina de 2004.
“A aplicação de ‘falso turista’ aos residentes do Mercosul — e mais ainda pelo acordo bilateral Argentina e Brasil — é incompatível com o convênio, tratados internacionais e com a lei de imigração da Argentina”.
Morales explicou que, na época da ditadura, o setor de migrações se baseava em uma ideia abstrata sobre quem entra na Argentina por turismo ou por razões distintas. A suspeita de “falso turista” recaía, principalmente, sobre o estrangeiro latino-americano, contou o advogado. “Mas a nova Lei de Imigração, o acordo Mercosul e o convênio Brasil-Argentina mudaram a resolução da ditadura”, esclarece Morales.