HQ Monstro do pântano, parte em que Alec oferta a Aby parte do seu corpo para comer, a fim de compartilhar a sua percepção do mundo.
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
A memória é um poço sem fundo, uma sala de edição, um estigma no córtex cerebral e um rasgo no corpo profundo da vivência.
As redes virtuais de existência consumiram os últimos vestígios de uma autoridade baseada completamente na verificação. Os discursos da ciência típicos do século XIX estavam repletos de mecanismos de fazer verdades. No século XXI, a velocidade intermodal das redes informacionais transigiu as fronteiras vivas para novas dimensões etéreas cujo significado está se tornando tramas de verdades sem verificação.
Comparado com os ritmos da criação de verdades de agora, as verificações científicas podem ser comparadas aos homens de pedra de Nala, na Austrália fantasmagórica. São projeções que insuflam não mais que crenças sagradas inquestionáveis.
Atualmente é muito difícil se fiar na concretude, como se tudo que é sólido desmanchasse no ar, como havia previsto Marx.
Numa conferência em 2010, Fiona Broome, uma investigadora paranormal, cunhou o conceito de Efeito Mandela para explicar fenômenos típicos de redes sociais na criação de verdades coletivas aparentemente injustificadas.
O efeito psicológico carrega o nome de Mandela devido à crença coletiva equivocada de que o ativista político sul africano teria morrido na prisão na década de 1980 e não em 2013.
O efeito Mandela aponta para os muitos usos da memória e para seu complexo movimento de atualizações. Embora muitos se refiram ao efeito como falsas memórias, o mais correto seria considerar que a memória não é infalível, pois as redes cerebrais alteram a forma como nos lembramos de um evento e a cada novo mergulho no resgate de determinada memória será sempre nova a recordação.
O que pode ser considerado estranho no caso do efeito é que muitas pessoas se lembram da mesma forma o evento, exemplo da morte do líder sul africano.
Por isso necessitamos recorrer a outro fenômeno de ordem colaborativa: a bolha memética.
O conceito de memes surgiu em 1976 com Richard Dawkins, como um análogo cultural dos genes. Deveria ser possível estudar a cultura através do processo de evolução por seleção natural de memes, ou seja, de comportamentos, ideias e conceitos. O filósofo Daniel Dennett utilizou tal conceito como central em sua teoria da consciência e pela primeira vez divulgou para o grande público a possibilidade de uma ciência dos memes chamada “memética”. A pesquisadora Susan Blackmore (1999) foi quem mais se aproximou de uma defesa completa de tal teoria. No entanto, a memética sofreu pesadas críticas e ainda não se constituiu como uma ciência, com métodos e uma base empírica bem definida.
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A manifestação memética envolve inúmeros radicais e vou focar apenas naquele que diz respeito à invasão das mentes com a mesma ideia, considerando distancias impossíveis de promover diálogo.
Se observamos alguns exemplos, como o da invenção do rádio ou do avião, em que os inventores, por caminhos diversos e aparentemente sem comunicação chegaram ao mesmo lugar, podemos igualmente perceber ideias literárias que em lugares diferentes do mundo manifestaram-se.
A coincidência de temas entre Neil Gaiman e Terry Pratchett no início da produção de seu quadrinho Sandman não é o único testemunho do funcionamento da memética.
Depois de escrever capítulos inteiros, com uma leitura ocasional descobria que o outro autor tivera a mesma ideia.
Depois de acontecer algumas vezes, ele procurou o outro para falar sobre a estranha coincidência e a resposta foi mais ou menos esta: estamos ligados como antenas no mesmo rádio e não há problema de cada um de nós materializar a ideia.
Tanto a qualidade editável da memória quanto a manifestação memética explicitam uma estranha permanência de redes de colaboração que ocorrem nos níveis mais sutis da criatividade. A lembrança coletiva de um evento ou a criação de ideias comuns entre diferentes pessoas revelam zonas de fluidez que não podemos explicar.
Mas sempre entra em posição os critérios de verdade, falsidade, invenção.
Ao mesmo tempo em que a crença de difícil consumação nas verdades científicas foi sendo desfeita, um nó de rato ia se constituindo nas veias das redes virtuais com verdades provisórias, mas consistentes, com acusações de fakes News contra aquelas que se levantavam contra alguns senhores de castelos de areia globais ou locais, pois as redes são multiversos indefectíveis.
Nas redes, a incorporação de uma verdade se assemelha a um processo de adoção. Primeiro se decide adotar e depois elege-se as características. Cada uma de acordo com as preferências.
Dirigido e escrito por Kristoffer Borgli, o filme O homem dos sonhos conta a história de Paul Matthews, “um homem comum com uma vida banal que, misteriosamente, começa a aparecer nos sonhos de pessoas que ele nem conhece.
Logo, esses sonhos se tornam pesadelos, fazendo da fama súbita do personagem que aparecia pacificamente nos sonhos fosse alterada, pois a partir da segunda metade do filme ele surge nos sonhos como um terrível assassino.
Embora seja inocente nos dois casos, a vida de Paul será cancelada e de nada vale seu apelo de inocência, pois tudo ocorre no mundo dos sonhos. A vida real será o palco da glória e da destruição.
A metáfora dos cancelamentos não é ocasional. E esse artifício informacional está aí para usos e frutos de cada um. A destruição moral pela mente coletiva da rede é fácil e oportunista.
A mentalidade coletiva é real, proverbial e informacional e estamos sempre solicitando ou sendo solicitado a redigir com ela nosso acordo. O diabo diz: “eu sou legião!”
De acordo com tradicional crença Cristã em bruxaria, o pacto é entre a pessoa e Satã ou um demônio. A pessoa oferece a própria alma em troca de favores diabólicos. Estes favores mudam com o conto, mas normalmente incluem juventude, conhecimento, riqueza ou poder.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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