Mário Ferreira dos Santos, Vilém Flusser e Olavo de Carvalho: O peso dos intelectuais fora da universidade
Eduardo Bonzatto*, Pragmatismo Político
A universidade brasileira foi se recolhendo às tarefas acanhadas dos títulos na segunda metade do século XX.
Se antes havia certo desregramento salutar, com sua institucionalização crescente a exclusão do que não cabia na norma a mediocrizou.
Essa redução do intelectual ao universitário expurgou algumas das melhores e mais criativas mentes da história intelectual nos últimos 70 anos.
Tratarei aqui de três desses pensadores que por razões diferentes foram considerados e desconsiderados nas zonas de normatizações acadêmicas.
Mário Dias Ferreira dos Santos (1907-1968) foi um filósofo, tradutor e escritor brasileiro. Traduziu obras de diversos autores e escreveu livros sobre diversos temas, publicados sob o nome Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais. Ele também desenvolveu seu próprio sistema, nomeado de Filosofia Concreta.
Vilém Flusser (1920-1991) foi um filósofo Checo-brasileiro. Autodidata, durante a Segunda Guerra, fugindo do nazismo, mudou-se para o Brasil, estabelecendo-se em São Paulo, onde atuou por cerca de 20 anos como professor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor.
Olavo Luiz Pimentel de Carvalho (1947-2022) foi um ensaísta, polemista, influenciador digital e ideólogo brasileiro, que também atuou como jornalista, escritor e astrólogo. Era considerado um representante intelectual do pensamento conservador no Brasil.
Três pensadores livres dos arcabouços normativos da universidade, razoavelmente autodidatas e que construíram modelos teóricos fundamentais para o patrimônio intelectual, mas que foram ignorados depois dos anos 1990.
A motivação para esse ostracismo está ancorada justamente na peculiar condição da universidade nos tempos neoliberais.
Para entendermos essa situação, quero trazer minha própria trajetória acadêmica.
Estudei num tempo em que as regulamentações impostas pelos acordos internacionais sobre educação, que envolviam uma ampliação das vagas na criação de faculdades privadas e expansão pela interiorização das universidades públicas, exigiam que os professores fossem titulados em proporções adequadas, 30% de doutores, 40% de mestres e 30% de especialistas. Isso valia para as universidades públicas e privadas.
Então, uma série de vagas nos cursos de pós-graduação foram abertas, em estímulos a que os estudantes de graduação se empolgassem para esses níveis de estudo.
Que esteja claro que as exigências foram diminuídas, pois os processos nessa formação eram urgentes.
Existiam, nos tempos em que fiz meus estudos pós-graduados, duas possibilidades para a pesquisa. A primeira trazia as teorias marxistas. Esse modelo de pesquisa é bem simples, pois a teoria funciona como um armário com suas gavetas. Então, a realidade da pesquisa se adapta a esse armário teórico e o resultado é sempre adequado. Há pouca chance das pesquisas, que envolviam bolsas de estudo como estímulo, desse errado, já que a cada fracasso, aquela bolsa não mais voltaria a ser ofertada.
A outra maneira era as pesquisas que envolviam a hermenêutica. Aqui a situação do pesquisador era muito instável, pois a questão da interpretação tornava o caminho da pesquisa muito incerto. Daí que era um movimento tido como de elite, como se os orientadores dessa zona de pesquisa fossem de alto nível, portanto, de origem das castas superiores e antigas.
A quase totalidade das pesquisas em universidades públicas tinham como base teórica esse marxismo que, de fato, estava muito distante daquilo que Marx imaginara. Era uma bíblia facilmente aplicada a qualquer fenômeno.
A resultante foi uma realidade universitária pobre, limitada, mas arrogante, como se a chancela de marxista lhe garantisse um elevado reconhecimento acadêmico. E como as zonas de pesquisa acadêmica são reformuladas pelos estudantes que aceitam o domínio de professores, essa forma simplória se tornou hegemônica.
A rigor, a forma com que as pesquisas deveriam responder diz respeito a que cada pesquisa, no decorrer das análises, pudesse produzir sua peculiar teoria. Desse modo, a mentalidade reflexiva e aberta teria sido a marca da universidade. Mas a realidade foi muito diferente.
Basta para ser professor, pois a grande maioria dos pesquisadores nas áreas de história, filosofia, etc., se torna professor e seu grande sonho é ser professor de universidade pública.
É uma aplicação tímida dado o investimento que o Estado faz nessas formações, mas o resultado é sempre acanhado. Professores que se orgulham de seu posto conquistado, que se aplicam na zona de formação do doutorado, sem abertura para qualquer outra aplicação e cuja arrogância denota claramente sua precária formação intelectual.
Um profissional que desconhece o ambiente geracional que o formou e que encara com preconceito quem não detém os mesmos títulos que ele.
Mario Ferreira dos Santos foi um dos maiores pensadores brasileiros, publicando seus livros sob o nome de Enciclopédia de Ciências Filosóficas e Sociais, em que criou um sistema próprio chamado de Filosofia Concreta.
Foi um dos poucos estudiosos brasileiros a estudar o anarquismo cristão, participante ativo do Centro de Cultura Social, admirado e lido por Edgard Leuenroth e Jaime Cubero.
A partir de 1947 passou a dedicar-se unicamente à filosofia. Fiel à ideologia anarquista, lecionou durante esse tempo para alunos particulares e pequenos grupos informais:
“Nunca ocupei nenhum cargo em nenhuma escola, por princípio. Deliberei, desde os primeiros anos, tomar uma atitude que consiste em nunca disputar cargos que podem ser ocupados por outros. Sempre decidi criar o meu próprio cargo, a minha própria posição sem ter de ocupar o lugar que possa caber a outro. Eis por que não disputo, nunca disputei nem disputarei qualquer posição que possa ser ocupada por quem quer que seja”.
Certamente, essa decisão que é louvável, condenou seu desaparecimento para as gerações vindouras, que tiveram seu nome segregado por professores medíocres e limitados. Hoje seus livros voltaram a ser editados, mas seu nome ainda é um privilégio de alguns neófitos que, como ele, desdenham do ambiente acadêmico limitante e avaro.
Vilém Flusser é igualmente ignorado nas universidades, principalmente nos cursos em que ele mais poderia ter contribuído.
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Seu trabalho inicial foi marcado pela discussão do pensamento de Heidegger e pela influência do existencialismo e da fenomenologia. A fenomenologia teria um papel importante na transição para a fase posterior de seu trabalho, na qual ele voltou sua atenção para a filosofia da comunicação e da produção artística. Ele contribuiu para a dicotomia da história: o período de adoração da imagem e o período de adoração do texto, cujos desvios resultaram na idolatria e na “textolatria”. Flusser é um dos filósofos brasileiros mais estudados internacionalmente.
Ao longo da década de 60, leciona Filosofia da Ciência, na Escola Politécnica da USP, e Filosofia da Comunicação, na Escola Superior de Cinema e na Escola de Arte Dramática (EAD), também em São Paulo. Além disso, colabora regularmente com com o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo e participa ativamente da vida artística da cidade, colaborando com a Bienal de São Paulo. Publica seu primeiro livro – Língua e realidade em 1963. Ajuda a fundar a Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), e dedica grande parte de seu tempo ao aprimoramento do departamento, dando aulas concorridas que, de acordo com relatos, chegavam a lotar o Teatro FAAP. Em 1966, inicia sua colaboração com o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung.
Contudo, em 1970, quando a reforma universitária agregou todos os professores de filosofia da USP ao Departamento de Filosofia da FFLCH, Flusser, que era professor da Politécnica, não foi recontratado. A hipótese de que sua saída da Universidade tenha sido mais um episódio de repressão política relacionado ao regime militar, vigente na época, não parece provável. A maioria dos membros do Departamento era bastante crítica com relação ao regime, enquanto Flusser era considerado conservador entre seus pares. Aparentemente, a não renovação do seu contrato com a Universidade deveu-se à falta de comprovação de títulos acadêmicos.
Das 35 mil páginas que escreveu ainda nem dez porcento foi publicada. Conserva arquivos no Brasil e na Alemanha abertos a pesquisadores não preconceituosos e ignorantes.
Autodidata por formação, Olavo de Carvalho é particularmente odiado pelos representantes do mundo acadêmico brasileiro. As informações em sites como o Wikipédia, que deveria informar, estão repletas de desqualificações. O ódio que transparece contra o pensador tem duas vertentes. A primeira, o uso que ele fez das redes sociais. Seu curso de filosofia aberto a qualquer um ofendia frontalmente as camarilhas acadêmicas. Mas de fato, tais cursos foram úteis para mais de 500 mil estudiosos e influenciaram mais a formação em filosofia do que todos os cursos universitários juntos, sempre tão elitistas e restritos.
O segundo fato reside justamente no uso que o discurso político de esquerda lhe impôs, como sendo um polemista que fomentava o discurso do ódio.
Como se levantou contra os discursos do politicamente correto, a militância sempre ignorante e desonesta não pode aceitar que pensamentos divergentes sejam impunemente divulgados.
O Brasil do empoderamento é sensível a questões que se mantém fora das normas a que todos devem seguir e o meio acadêmico, o mais intransigente para pensamentos diferentes dos seus, é o banco de juízes e carrascos que cancelam os heréticos.
Em sua História Essencial da Filosofia apresentou estudo sobre as contradições de autores como R. Descartes, Lutero, Hobbes, Maquiavel, Rousseau, Kant, Hegel, Darwin, Newton, Marx, Engels, Feud, Nietzsche, Comte, Gramsci, Horkheimer, Adorno, Habermas, Fromm, Wittgenstein, Derrida, Deleuze, Sartre, Chomsky, Dawkins, dentre outros. Mas como se utilizava da livre interpretação para essas jornadas, sem o aval oficial da universidade, era ridicularizado por sua baixa formação escolar. Ele mesmo reconheceu que abandonou a escola muito cedo e que nunca frequentou um banco universitário.
Uma vista d’olhos em trechos dos escritos de Olavo de Carvalho pode fazer cair por terra todo destrato que lhes devotam aqueles que nunca o leram e que se alimentam apenas dos fuxicos das redes.
“A abertura para a razão é educação. Educação vem de ex ducere, que significa levar para fora. Pela educação a alma se liberta da prisão subjetiva, do egocentrismo cognitivo próprio da infância, e se abre para a grandeza e a complexidade do real. A meta da educação é a conquista da maturidade. O homem maduro — o spoudaios de que fala Aristóteles — é aquele que tornou sua alma dócil à razão, fazendo da aceitação da realidade o seu estado de ânimo habitual e capacitando-se, por esse meio, a orientar sua comunidade para o bem. Este ponto é crucial: ninguém pode guiar a comunidade no caminho do bem antes de tornar-se maduro no sentido de Aristóteles. Líderes revolucionários e intelectuais ativistas são apenas homens imaturos que projetam sobre a comunidade seus desejos subjetivos, seus temores e suas ilusões pueris, produzindo o mal com o nome de bem”.
O ranço acadêmico brasileiro condenou cada um desses pensadores a uma forma de silêncio. Só não o fez com Olavo de Carvalho porque a rede é livre e espalha sua informação sem a censura que os centralizadores gostariam.
E parece que a cada tempo em que a ordem universitária é reduzida por pensadores sem estofo, por repetidores deselegantes, por reprodutores das velhas teorias incapazes de analisar uma fábrica de agulhas, as hostes de ignorantes diplomados, de doutores que ainda operam como analfabetos funcionais, se fortalecem entre si numa autorreferencia que pode convencer os neófitos de que abarcam a intelectualidade, mas que não resiste quando desempanamos as zonas ainda virgem dos verdadeiros pensadores sem redil.
Não custa lembrar de outro pensador que se levantou contra o obscurantismo da caverna universitária em seu tempo, Millôr Fernandes, quando dizia que “livre pensar é só pensar”.
*Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor
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